O STF (Supremo Tribunal Federal) irá discutir a gravidade do crime da “rachadinha” antes de julgar o caso do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), denunciado pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) sob acusação de ter arrecadado parte do salário dos servidores de seu gabinete quando era deputado estadual.
O tema será analisado a partir de 27 de novembro na ação penal em que o deputado federal Silas Câmara (Republicanos-AM) é acusado de peculato por prática similar à do filho do presidente. O processo será julgado no plenário virtual e vai até 4 de dezembro.
A análise da ação vai refletir a visão dos ministros sobre o delito e deve estabelecer balizas para julgamento de crimes desta natureza.
O STF não tem nenhum precedente sólido sobre situações em que agentes públicos recolhem parte do vencimento de servidores.
A corte já julgou a caracterização do crime de peculato por uso inadequado de servidor, mas nunca debateu com profundidade um cenário em que há devolução de salário.
É comum, por exemplo, o STF penalizar políticos que mantêm funcionários fantasmas. Por outro lado, também é normal o tribunal arquivar denúncias de peculato por uso de assessores para fins particulares.
O deputado federal Celso Russomano (Republicanos-SP) chegou a ser condenado em primeira instância porque uma secretária paga pela Câmara dos Deputados teria atuado em sua produtora de vídeo por quatro anos.
Em 2016, porém, o STF reverteu a decisão por um placar de 3 votos a 2 na Segunda Turma da corte. A ministra Cármen Lúcia e Teori Zavascki, que morreu em 2017, defenderam a penalização de Russomano, mas Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Celso de Mello formaram na ocasião maioria para absolvê-lo.
Em 2014, a 1ª Turma tomou decisão parecida ao rejeitar denúncia contra o então deputado Osvaldo Reis.
Na ocasião, prevaleceu a tese da relatora, ministra Rosa Weber, de que “a utilização dos serviços custeados pelo erário por funcionário público no seu interesse particular não é conduta típica de peculato”.
A magistrada argumentou que a Constituição veda a condenação por “crime sem lei anterior que o defina”.
Agora, a expectativa é que o julgamento de Silas Câmara crie uma jurisprudência em relação aos elementos que caracterizam o crime da ‘rachadinha’ e sobre a dosimetria da pena para essa prática.
O resultado da análise pode ser usado, a depender do placar, tanto pela defesa do filho do presidente Jair Bolsonaro quanto pelo MP-RJ para reforçar suas teses.
Atualmente, a responsabilidade para decidir o recebimento da denúncia contra Flávio é do Órgão Especial do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), composto por 25 desembargadores.
O caso foi retirado das mãos do juiz de primeira instância, Flávio Itabaiana, seis dias depois de ele mandar prender o policial militar aposentado Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio, amigo do presidente e apontado como operador do esquema.
Isso ocorreu em 25 de junho por decisão da 3ª Câmara do TJ-RJ, que aceitou habeas corpus da defesa do senador. Dois dos três desembargadores do colegiado sustentaram que, como o senador trocou um mandato por outro, o foro especial deve ser mantido.
O MP-RJ, então, acionou o STF sob argumento de violação à decisão da corte do começo de 2018 de restringir o foro especial a delitos cometidos durante o mandato e relacionados à função.
O próprio presidente da 3ª Câmara do tribunal estadual, desembargador Antônio Carlos Amado, reconheceu ao STF que a decisão pode ter sido “inédita”, mas disse que não foi absurda, inadequada nem desrespeitou ou ofendeu a jurisprudência da corte.
O relator da ação do Ministério Público no Supremo é o ministro Gilmar Mendes, e o tema ainda não tem data para ser analisado. O ministro indicou que deve submeter o processo à Segunda Turma da corte.
Nesse caso, também existe uma expectativa sobre a posição a ser tomada por Kassio Nunes Marques, primeiro indicado do chefe do Executivo para uma vaga no Supremo. O magistrado é relator de uma ação da Rede que trata do mesmo tema, mas a tendência é que a ação do MP-RJ seja analisada antes.
Kassio também participará do julgamento de Silas Câmara, que ocorrerá no ambiente virtual. A defesa do deputado pediu ao relator, ministro Luís Roberto Barroso, que o julgamento ocorra no plenário físico.
O magistrado ainda não analisou a solicitação. Mesmo que ele a rejeite, porém, se outro ministro pedir destaque, o caso sai de pauta e vai para as mãos do presidente do STF, Luiz Fux, escolher nova data para análise em sessão presencial, atualmente realizada por videoconferência.
A diferença entre esse processo e o de Flávio é que o senador também foi denunciado por lavagem de dinheiro, apropriação indébita e organização criminosa. Peculato é o delito que prevê a maior pena.
Em relação ao deputado, a PGR (Procuradoria-Geral da República) considerou grave a conduta e pediu a fixação da pena de 12 anos, o máximo possível para o delito previsto no artigo 312 do Código Penal.
A PGR acusa o parlamentar de recolher parte do salário dos servidores de seu gabinete e de nomear funcionários fantasmas. Segundo a Procuradoria, ele desviou R$ 145 mil com o esquema, valor muito inferior ao que teria sido movimentado por Flávio.
A denúncia foi recebida por unanimidade pelo STF em 2010, quando o relator do caso era o ministro Joaquim Barbosa, que já deixou a corte. A PGR afirma que ele recolheu o salário de servidores e empregou uma cozinheira, um motorista e um piscineiro no escritório de representação do mandato no estado de origem, o Amazonas.
Além da pena de 12 anos, a Procuradoria quer que o deputado pague multa e indenize os cofres públicos no valor do dobro do montante desviado com juros e correção monetária.
No processo, a defesa do deputado disse que os elementos dos autos comprovam que ele não teve funcionário fantasma. O parlamentar também alegou que não houve “nem prova de prejuízo e nem prejuízo efetivo ao erário”, o que inviabiliza a condenação por peculato.
A defesa menciona ainda uma decisão do TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) que absolveu um político acusado de exigir devulação de salários sob o argumento de que “os vencimentos, uma vez creditados em suas contas bancárias, constituem recursos privados, à livre disposição dos seus titulares”.
Folha de SP
Necessitava não.