A OMS cravou, recentemente, que transexualidade não é distúrbio mental. Mas fez mais que isso: declarou que assédio nos ônibus é tão sério quanto pedofilia. (FotografiaBasica/iStock)
Na última semana, a Organização Mundial da Saúde fez algo que não fazia desde 1992: criou uma nova versão da sua listagem oficial de doenças, a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (conhecida como CID). A mudança serviu para destacar como a organização tem transformado sua percepção nas últimas décadas – principalmente quando o assunto é sexo.
A mudança que chamou mais atenção envolve as pessoas trans. A organização afirmou que não considera mais a transexualidade um distúrbio mental – classificação que perdurou pelos últimos 28 anos.
A situação toda, no entanto, é mais complexa do que parece. Não dá para simplesmente afirmar que o T do LGBTQ não é mais associado à doenças pela OMS.
Um olhar atento revela que as pessoas que não se identificam com o corpo em que nasceram continuam na listagem – só que elas mudaram de categoria.
A transexualidade agora é identificada pelo termo “incongruência sexual”, descrito como “uma incongruência marcada e persistente entre o sexo designado a alguém no nascimento e o gênero vivenciado”.
Ok, então não é mais distúrbio. Agora, essa incongruência foi adicionada a uma nova categoria, “Condições relacionadas com saúde sexual”. A seção também inclui, além das pessoas trans, os pacientes com disfunção sexual, ou que sentem dor durante o sexo.
Ué, então transexualidade continua sendo doença? Mais ou menos.
A OMS optou por manter um equivalente à transexualidade na lista (mesmo que fora da categoria de distúrbios mentais). Mas foi com uma intenção positiva – a de beneficiar a vida de pessoas trans ao redor do mundo.
“A lógica é que, enquanto as evidências são claras de que [a transexualidade] não é um transtorno mental”, diz o documento, “ainda existem necessidades significativas de cuidados de saúde, [cuidados] que podem ser melhores se a condição for codificada sob o CID”.
Traduzindo: o CID serve de referência mundial para a medicina. A inclusão do termo na listagem ajuda a orientar médicos ao redor do mundo sobre o que fazer – ou não – ao se deparar com um paciente trans.
A inclusão também pode beneficiar o bolso dos pacientes. Alguns países só aceitam investir verba de saúde pública para cuidar de questões listadas pela OMS. No caso dos EUA, se um tema é listado no CID, os tratamentos recebem descontos em impostos e taxas. Na prática, isso facilita o acesso de pessoas trans à terapia, ao acompanhamento médico e até a cirurgia de readequação de gênero – que, nessas condições, pode sair muito mais em conta (ou até por conta do governo), graças à adição da “incongruência sexual” na lista da Organização Mundial da Saúde.
A atualização na CID também esclareceu outros posicionamentos da OMS quando o assunto é sexo. Por anos, a organização não diferenciava de forma clara o que era uma preferência pessoal (um fetiche inusitado, mas inofensivo) e o que era uma doença, uma prática prejudicial e até um crime. Ficava tudo meio misturado.
Agora, a OMS tomou o cuidado de reorganizar as coisas. Tirou da lista o travestismo, sadomasoquismo e fetiches associados a objetos (como saltos e látex) – interesses e práticas sexuais que não são doenças.
Antes, elas pertenciam ao grupo de parafilias, distúrbios mentais ligados diretamente ao desejo sexual. Agora, essa categoria enfatiza que são transtornos as práticas sem consentimento – situações em que as demais pessoas envolvidas não concordaram com o ato sexual. É o caso do frotteurismo, transtorno que entrou no manual pela primeira vez. A listagem descreve o distúrbio como “um padrão intenso de excitação sexual que envolve tocar ou esfregar-se contra uma pessoa sem consentimento em lugares públicos lotados”. É o assédio que brasileiras sofrem diariamente no transporte público. E que, pela primeira, foi formalmente classificado como um problema – exigindo, portanto, intervenções para evitar prejuízo a todos os envolvidos.
O frotteurismo já aparecia na versão antiga da CID, mas de maneira muito discreta. Anteriormente, dentro da categoria que descrevia as parafilias, os frotteuristas apareciam apenas como um exemplo de “outros distúrbios” que não necessariamente estariam especificados dentro da lista, mas que seriam problemáticos.
Agora, o frotteurismo ganhou um tópico só para si dentro das doenças parafílicas. Pode parecer pouco. Mas com isso, a OMS coloca os assediadores de transporte público exatamente na mesma categoria que estão pessoas que praticam pedofilia.
A OMS, vale repetir, só considera que se tratam de parafilias se alguma das pessoas envolvidas no ato sexual não estiver consentindo com o sexo. A única exceção é quando a atividade traz risco à vida do(s) participante(s).
É o caso da asfixiofilia, o tesão por ser asfixiado durante o ato sexual. A brincadeira, às vezes, dá errado e sai do controle – como no caso do ator David Carradine, que interpretava Bill, na série de filmes Kill Bill, que morreu asfixiado enquanto se masturbava.
O que tudo isso quer dizer sobre a visão atual da Organização Mundial da Saúde sobre o sexo? A instituição optou por deixar uma mensagem bem clara à comunidade médica sobre como se deve “enfrentar” a vida sexual de seus pacientes: toda forma de vivenciar o sexo (e o gênero!) é válida e todos podem transar da forma que quiserem – desde que todos queiram.
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