Andrielle Mendes / Tribuna do Norte
A cozinheira “K. V.” viu a renda despencar depois que o patrão mudou o seu horário de trabalho e ela precisou abrir mão do bico de diarista. O salário líquido caiu para menos de R$ 600 – quase metade dele já comprometido com o aluguel. Desde então, K. V. tem feito um verdadeiro malabarismo para pagar as contas em dia e não engrossar a fila de inadimplentes no Rio Grande do Norte.
Segundo dados do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) da Câmara de Dirigentes Lojistas de Natal (CDL Natal), há 418.327 dívidas em aberto no SPC no RN. Juntas, as dívidas, contraídas entre 2008 e 2012, e que ainda não prescreveram, somam pouco mais de R$ 1,93 bilhão. O valor é considerado alto e surpreendeu a CDL, que atualizou os dados esta semana. Mas não é apenas o valor que chama a atenção.
A taxa de inadimplência no RN subiu quase quatro vezes mais do que no país. A proporção de pessoas que entraram e não conseguiram sair do SPC, segundo a CDL, mais do que dobrou no estado no último ano. O SPC/CDL esperava uma taxa de 9% e se surpreendeu quando fechou os números e se deparou com uma de 12,4% – 7,4 pontos percentuais maior que a de 2011. O incremento é quase quatro vezes maior que o da taxa brasileira (1,9 pontos percentuais).
O grande vilão, na ótica de Augusto Vaz, diretor do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) na Câmara de Dirigentes Lojistas de Natal, foi o setor público, que atrasou o pagamento de servidores e fornecedores, gerando um efeito cascata na economia, que foi desembocar inicialmente no setor do comércio.
Segundo levantamento realizado pelo economista Marcus Guedes, com base nos dados do Cadastro Geral dos Empregados e Desempregados do Ministério do Trabalho e Emprego, três em cada dez potiguares trabalham para o setor público no Rio Grande do Norte. “Atrasar pagamentos é determinante para o avanço da inadimplência”, observa Carlos Henrique de Almeida, economista da Serasa Experian. A lógica é simples. “Se eles deixam de receber, deixam de pagar as contas”, acrescenta Marcus Guedes.
Augusto reconhece que ‘Natal é muito dependente do serviço público, diferentemente de outras cidades que tem a economia fundada na indústria ou no agronegócio’, e confessa que os prognósticos, pelo menos para este primeiro semestre, não são nada bons. A expectativa, segundo ele, é que a inadimplência se mantenha alta pelo menos até o próximo semestre. O alerta já está ligado há um bom tempo.
Segundo levantamento realizado pelo Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (Etene), vinculado ao Banco do Nordeste, ainda em agosto de 2012 – o último de que se tem notícia – Natal era a capital com maior proporção de consumidores inadimplentes da região Nordeste. Em Natal, quase sete em cada grupo de 100 pessoas não tiveram condições de pagar suas dívidas na data do vencimento, em agosto, na capital potiguar.
A proporção pode parecer pequena, mas ficou bem acima da regional (4,1%). Em capitais como João Pessoa, a última colocada no ranking, a proporção de consumidores inadimplentes é quase três vezes menor (2,2%). O resultado disso, na avaliação dos economistas, é mais redução nas vendas e na produção, no RN.
Enxurrada de crédito eleva índices negativos no país
Embora seja apontado como uma das principais causas para o avanço da inadimplência no Rio Grande do Norte, o atraso no pagamento de fornecedores e servidores por parte do poder público não foi a única razão para que a proporção de pessoas que entraram e não conseguiram sair do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) da Câmara de Dirigentes Lojista de Natal mais do que dobrasse entre 2011 e 2012.
Para os especialistas, o aumento da oferta de crédito, no país como um todo, também contribuiu para este quadro. De acordo com levantamento realizado pelo economista Marcus Guedes, com base nos dados do Banco Central, o total emprestado à pessoas físicas no país entre 1º de janeiro de 1994 e 30 de setembro de 2012 chegou a R$ 679,3 bilhões. O total é 4.139% superior ou 42 vezes maior que o emprestado em 1994, início do Plano Real e da estabilização da economia.
Nem o comércio (+931%) nem o setor de serviços, o que mais cresceu no ano passado, (+1.568%), apresentaram variação tão grande no volume de crédito acessado. O economista, que não dispunha de números locais, acredita que a oferta de crédito no RN deva ter subido na mesma proporção.
Os dados, na avaliação de Carlos Henrique de Almeida, economista da Serasa Experian, mostram que o problema da inadimplência no Brasil ‘não vem só de 2012’. “Vem de anos anteriores, como do ano 2000, com o aumento da oferta de crédito, e alongamento dos prazos de pagamento”, observa.
Para Marcus Guedes, também economista, mais crédito, significa mais risco, principalmente quando não há educação financeira. O brasileiro – e o potiguar – segundo Marcus, não é muito afeito a colocar os gastos na ponta do lápis. “As pessoas começam a ver o crédito como uma forma de consumir e passam a consumir por impulso”, observa Marcus.
Para Carlos Henrique, o aumento da taxa de inadimplência tem um preço. E ele pode ser mais salgado do que se imagina. “Toda vez que a inadimplência sobe, sobe o risco de se emprestar dinheiro. É lógico que a primeira decisão das instituições financeiras será analisar mais criteriosamente quem quer tomar dinheiro emprestado”, afirma.
Embora acredite que a taxa de inadimplência vá cair, mesmo que de forma gradual no país, o economista da Serasa Experian não descarta restrição na oferta de crédito e aumento das taxas de juros para os próximos meses. “Quando a inadimplência passa a ameaçar a economia, o crédito fica menor e a pressão para aumentar os juros aumenta”, justifica.
Os economistas recomendam que quem já está no vermelho renegocie as dívidas junto aos credores e que quem está no azul evite dívidas desnecessárias. Já dizia um versículo conhecido da Bíblia: “aquele que está de pé, cuide para não cair”.
Vilão
De acordo com pesquisa realizada pela Boa Vista Serviços, administradora do Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC), banco de dados com mais de 350 milhões de informações comerciais sobre consumidores e 42 milhões de registros de transações entre empresas, o cartão de crédito continua sendo um vilão. Dos 1.110 brasileiros inadimplentes entrevistados para a pesquisa, 28% declararam ter alguma restrição gerada por uma compra realizada com cartão de crédito. Em seguida, aparecem o carnê/boleto (26%), cheque sem fundos (18%), empréstimo pessoal (16%), cartão de loja (8%) e cheque especial (4%). O cartão de crédito foi apontado como causador da restrição por 29% dos entrevistados com renda média familiar de até três salários mínimos, e 20% dos entrevistados com renda média familiar acima de dez salários mínimos. O levantamento foi divulgado no último dia 30 e mostra que metade dos entrevistados foi parar nos cadastros da Serasa ou SPC por possuir apenas uma conta em atraso. “O cartão de crédito, se mal utilizado, é o primeiro passo para o cemitério”, observa Marcus Guedes, economista.
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