Do Blog de Reinaldo Azevedo:
A petralhada está enchendo o meu saco, e nem poderia ser diferente. A Folha deste domingo traz uma entrevista do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em que ele faz a defesa veemente da descriminação — e não da legalização — das drogas, de todas elas. No Fantástico, a alguns milhões, defende a mesma tese. O evento que marca tanta falação é o lançamento do filme “Quebrando o Tabu”, do diretor Fernando Andrade, irmão de Luciano Huck e amigo de muita gente influente e, segundo ele, “inteligente”. Por meio dos tais mecanismos de incentivo, conseguiu arrecadar R$ 2,4 milhões, bastante dinheiro para o gênero, e não terá dificuldade nenhuma para divulgar a sua obra. Ponto parágrafo.
Vamos começar do básico. Petralhas torram a minha paciência porque, sendo quem são, sentem-se na obrigação e no dever de defender todas as bobagens que seu mestre diz. E isso os faz meter-se em operações impossíveis. A do momento consiste em justificar o “enriquecimento lícito” de Antonio Palocci. Eu não tenho partido e, sendo quem sou, não tenho tarefas. O FHC que defendo é aquele que eles dizem abominar: o do Plano Real e o da abertura da economia. E seguirei fazendo essa defesa. À medida que passa o tempo, estou cada vez mais convencido da grandeza de sua obra; quanto mais fico sabendo sobre aquele período, mais me dou conta das dificuldades que ele e a equipe do Real tiveram: trocaram as asas de um avião sem deixar o bicho cair. Salvaram o Brasil do desastre. O país só não reverencia, e a palavra seria essa, o que foi feito porque passou pelo trabalho sistemático de depredação da verdade, promovido por Lula e sua turma.
Mas não! Eu não concordo com a opinião — e se trata disto: de opinião apenas — de FHC sobre o que fazer institucionalmente com as drogas e considero a tese que ancora o filme uma fraude lógica, amparada no achismo de algumas figuras de relevo internacional, como o próprio ex-presidente brasileiro e Bill Clinton, um seu homólogo americano. Aliás, note-se: segundo vejo no trailer do filme, o grande argumento de Clinton em favor da descriminação está num exemplo familiar: um irmão drogado. Aí já é fraude sentimental. A fraude lógica se expressa no argumento tolo de que, se a repressão não consegue eliminar o problema das drogas, talvez o contrário resolva; a sentimental nos informa que os drogados são pessoas que amamos (alguém sempre as ama, claro!). E daí?
Nas entrevistas, o ex-presidente faz a devida distinção entre descriminação e legalização — que é o que defende, por exemplo, a turma da Marcha da Maconha. Ok, são coisas diferentes, e penso que a simples descriminação é ainda mais temerária.
A política também é feita de oportunidades, como ele sabe muito bem — e isso nada tem a ver com oportunismo. Eu me refiro àquelas circunstâncias que Maquiavel, que ele domina melhor do que eu, chama de “Fortuna”. Esse filme pode ser excelente para a reputação do jovem diretor. Está longe de representar, no entanto, um anseio ou uma angústia coletiva. A polêmica tomará conta da imprensa e das tais redes sociais, e a ela ficará alheia a esmagadora maioria da população, que repudia a tese.
E não faço desse repúdio um juízo absoluto — “Se o povo não quer, então ele está certo”. Eu já escrevi centenas de textos contestando cada um dos argumentos a que recorre FHC para defender a descriminação. O repúdio popular às drogas nasce de circunstâncias muito objetivas. O estado tem falhado sistematicamente em oferecer segurança pública aos mais pobres. Ainda que as drogas todas fossem legais, vendidas na farmácia ou no supermercado, o que poderia desarmar o tráfico, mantida a incúria estatal, a bandidagem mudaria de ramo e continuaria a aterrorizar a população do mesmo modo. O estado tem falhado sistematicamente em oferecer uma educação de qualidade às crianças. A descriminação das drogas, como quer FHC, ou legalização — como querem uns doidivanas —, implicará, como é óbvio, uma elevação do consumo, derivado do simples aumento da exposição dos jovens às substâncias entorpecentes. Antes que as nossas escolas consigam alfabetizar direito ou ensinar os fundamentos da língua pátria e da matemática — aqueles que até o MEC ignora —, teremos garotos e garotas fumando maconha no portão.
A expectativa do Brasil nessa área é bem outra. Não é que o país tem falhado apenas no combate às drogas. Falha, como está dito, na política de segurança pública; falha no controle das fronteiras — a chegada do óxi anuncia efeitos devastadores. A urgência, esta sim, é um plano de combate a essas substâncias. Os usuários precisam de tratamento, e os traficantes, de cadeia.
Não! Eu não endosso os pontos de vista do ex-presidente e os considero mais ideologia do que reflexão. Numa entrevista à Folha, o diretor do filme afirma que sua obra é expressão de “uma luta contra o obscurantismo” — vale dizer: ou se está com ele, ou se é obscurantista, atrasado, reacionário etc.
Nas entrevistas, FHC defende a descriminação, mas não a legalização. O tráfico continuaria proibido — ele é simpático até à possibilidade, como defende Paulo Teixeira, líder do PT na Câmara, do cultivo da maconha para uso pessoal… Pois é. Por uma razão puramente lógica, para o traficante, a descriminação, lamento dizer, é o melhor dos mundos. Se é assim, que se legalize de vez! Por quê? Como o tráfico continuaria proibido, a droga seguiria sendo uma mercadoria cara e rentável. Como o consumo estaria liberado, haveria um óbvio aumento da demanda. Dos três cenários — proibição total, descriminação e legalização total —, qualquer negociante da área escolheria o aumento da demanda e da restrição da oferta. Isso nada tem a ver com droga, mas com economia… “Ah, em Portugal, está funcionando”. Há centenas de sites e blogs portugueses que sustentam que a tese é falaciosa, uma trapaça da contabilidade criativa que tomou conta do país tanto na economia como no combate às drogas. De resto, ainda que verdade fosse, governar 11 milhões de pessoas é um tanto diferente de governar 200 milhões, a esmagadora maioria composta de pobres. E a Holanda? Respondo com uma piada: vamos copiar primeiro os moinhos e os diques…
FHC defende ainda campanhas educativas contra o consumo, o tratamento dos dependentes etc. Tudo isso pode ser feito com a legislação atual. Aliás, ninguém que se diga hoje um dependente de drogas, de qualquer uma, e queira se tratar enfrenta problema legal. Enfrenta, sim, é a falta de atendimento especializado, a menos que seja rico.
Para a esmagadora maioria dos brasileiros, essa é uma discussão de outro planeta, lá onde habita a classe média alta esclarecida, liberal nos costumes e com caixa para sustentar o desregramento temporário dos sentidos de seus pimpolhos alternativos, cheios de amigos “inteligentes” — até a hora em que eles voltam às exigências e necessidades naturais de sua classe social. Vá perguntar aos pais e mães pobres do Brasil, àqueles que enfrentam, de fato, o faroeste do dia-a-dia. Os que fumam maconha protegidos, na prática, por segurança privada não são parâmetro.
Não, eu não acho que pobreza confira autoridade intelectual ou política a quem quer que seja. Isso é coisa dos lulo-petistas e de Jean Wyllys, essa gente que continua “pobre” mesmo depois que fica rica. O que os pobres têm é uma vivência em que a droga não é uma escolha do consumidor, como é para os “bacanas”, mas uma imposição do traficante que prospera em razão da inoperância do Estado. “Mas esse argumento é favorável à legalização”, diria o pessoal da Marcha… O Brasil não vai legalizar a droga sozinho; se o fizesse, sozinho ou em grupo, haveria uma explosão desastrosa do consumo.
Caminho para a conclusão. A partir de amanhã e por uns bons dias, o Brasil terá um novo assunto: a descriminação das drogas, da maconha em particular. O filme daquele rapaz será um sucesso na classe média ilustrada e entre os ricos liberais, e os “pobres reacionários” ficarão mais ou menos indignados. Na semana passada, Lula veio a público para salvar Dilma Rousseff. Pegou mal. Ele não conseguiu oferecer a ela o refrigério necessário. Piorou as coisas. Com suas entrevistas e com o filme, FHC, involuntariamente, abre uma janela à presidente — embora tenha descascado o seu governo na convenção de ontem do PSDB.
O Brasil teve dois presidentes que mudaram o rumo de sua história: Getúlio Vargas e FHC. Pensando o que penso, digo que aquele nos deu um viés ruim, do qual não nos livramos até hoje — a tara estatista supostamente benigna —, e este nos alertou para a existência de uma sociedade mais dinâmica do que o estado, lição ainda mal assimilada. Talvez cheguemos lá.
No que diz respeito às drogas, no entanto, o erro de FHC, entendo, é grande, é gigantesco, no conteúdo e na oportunidade. Quanto aos petralhas aos quais me refiro no começo deste texto, eles continuarão a atacar a obra essencial do ex-presidente e a usar as suas opiniões sobre o tema para demonstrar que eles próprios não estão sozinhos na defesa que fazem. Pensando o que pensam sobre o ex-presidente, se procedem dessa forma, é porque pretendem, quando menos, dividir um ônus. Fossem louros, eles reivindicariam o monopólio da virtude
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