O triste registro de famílias que esperam o mover do braço da Justiça após a morte violenta de pessoas próximas é mostrado na edição deste domingo de O Poti, em matéria de Moisés de Lima. A demora nos julgamentos leva famílias inteiras a conviverem com o sentimento de revolta ante uma impunidade iminente.
Diversos representantes da sociedade foram ouvidos para se tentar compreender as causas e reflexos de tais fatos, tanto para os que são vítimas diretas, quantos aqueles que observam a sucessão de tais acontecimentos.
Na esfera da polícia Judiciária, o titular da 9ª DP, da zona Norte, Fernando Alves, afirma que a falta de políticas de segurança pública acabam agravando a situação no RN. Segundo o delegado, a falta de comunicação entre os agentes de segurança acaba desembocando em um colapso, que pode ser ilustrado pela situação do sistema prisional.
Acerca da modalidade de crime homicídio, o policial dispara uma crítica quando lembra que existe um contraste entre o crescimento do Estado e das políticas públicas adotas aqui: “Só que o poder público não acompanhou este crescimento, e o Executivo não oferece condições prisionais. Não consegue sequer manter as prisões preventivas, quanto mais resolver o problema dos condenados. Aqui não existe sequer uma delegacia especializada em homicídios”, concluiu.
Na seara dos Direitos Humanos, Marcos Dionísio, ratifica que o grande problema encontrado pelas famílias vítimas de violência é justamente a impunidade. Um ciclo vicioso alimentado pela morosidade da Justiça, crise do sistema prisional e ineficácia da segurança pública acaba por fortalecer o fenômeno, explica ele.
O promotor Wendell Beetoven aponta que a polícia não cumpre os mandados de prisão por não terem para onde mandar os presos. Segundo ele, a impunidade está intimamente ligada a deficiência do Estado em investigar os casos de homicídio.
Segue a matéria na íntegra:
A copeira Maria de Fátima Barbosa da Silva respira fundo, acaricia uma fotografia e não contém as lágrimas. O semblante é de quem ainda tem forças para lutar pela condenação daquele que tirou a vida de sua filha. A cada julgamento do garçom Ernest Renan de Faria Souza, sempre remarcado na comarca de Extremoz, Maria e família levam faixas, cartazes, lotam as dependências do fórum e mobilizam a imprensa na esperança de que o réu seja finalmente condenado. Além deles, outras famílias de potiguares são obrigadas a conviver com a impunidade que causa indignação, desde o momento em que perdem entes queridos, vítimas de homicídios, cujos acusados estão em liberdade.
Maria de Fátima luta pela condenação de Renan, acusado de assassinar a jovem Fernanda Lidiana Barbosa na casa em que moravam juntos na Praia de Santa Rita, em 21 de dezembro de 2003. Uma tarde difícil de esquecer para ela e os filhos Flávio Joeldes e Fabíola. “Nossa família só ficará em paz quando a justiçafor feita”. A autoria do crime é negada até hoje por Ernest que, na época, afirmou à polícia que Fernanda havia ingerido raticida. “Nós encontramos poças de sangue por toda a casa com evidentes sinais de violência. E sabemos que ele sequer tentou pedir socorro. Além disso, ele fazia constantes ameaças contra ela e os filhos. Querem evidências maiores do que essas para condená-lo?”, pergunta Flávio Joeldes, irmão da vítima.
Ernest foi preso em flagrante e permaneceu detido durante um ano e oito meses até que fosse marcado o primeiro julgamento, cujas causas para a suspensão soam no mínimo estranhas a ouvidos leigos: “O julgamento foi paralisado por falta de alimentação dos jurados. Parece que o estado não tinha pago à empresa que fornecia as quentinhas”, relembra Maria de Fátima. O segundo júri deveria ter ocorrido em 2010, porém a defesa do acusado alegou problemas de saúde. Há um novo julgamento marcado para o dia 31 de agosto.
“Esperamos que tudo possa correr normalmente sem nenhuma dessas surpresas”, disse Flávio. A família de Fernanda aguarda que o julgamento determine a condenação de Ernest também por razões de segurança. “Nós não sabemos por onde ele anda e não temos ideia do que ele é capaz de fazer. Tememos pela nossa segurança”, avisa Maria Aparecida.
“Nunca houve políticas públicas”, diz delegado
Quando ocorre um homicídio o primeiro operador de segurança a ser acionado é a polícia. Na ponta desse processo há dois anos como titular da 9ª Delegacia de Polícia, localizada na Zona Norte, Fernando Alves é um severo crítico da ação do estado. “A verdade é que nunca houve uma política de segurança pública no estado. Não há comunicação alguma entre os operadores de segurança, daí vivermos este total colapso dentro do sistema prisional”.
O delegado o ressalta que é necessário o entendimento de que o Rio Grande do Norte cresceu. “Só que o poder público não acompanhou este crescimento, e o Executivo não oferece condições prisionais. Não consegue sequer manter as prisões preventivas, quanto mais resolver o problema dos condenados. Aqui não existe sequer uma delegacia especializada em homicídios”, finaliza.
Apoio às famílias
Estudioso dos casos de violência no RN, o presidente do Conselho Estadual de Direitos Humano, o advogado Marcos Dionísio afirma que a tragédia das famílias que buscam justiça é o emblema daimpunidade. “Há a morosidade do Tribunal de Justiça, a crise do sistema prisional e a ineficácia da nossa segurança que retroalimenta a violência”.
Dionísio está finalizando um relatório que mapeia todos os números de homicídio por bairros da Grande Natal que deverá servir como referência para que se entenda melhor os rumos que o crime vem tomando na cidade nos últimos meses. “Estamos em fase de finalização deste documento e deveremos divulgá-lo na próxima semana”, informa.
O advogado revela que há na cidade uma entidade especializada em prestar apoio e solidariedade às pessoas que tiveram parentes assassinados. “Trata-se do Centro de Referência em Direitos Humanos que presta apoio às famílias que lutam contra a impunidade”. O centro funciona na rua Gustavo Guedes, 1886, Cidade Jardim. Telefone para informações: 3215 1655.
Promotor aponta colapso no sistema prisional
“A polícia não cumpre os mandados, pois não tem para onde levar os presos”, aponta o promotor criminal Wendell Beetoven ressaltando que existe uma notória deficiência do estado para investigar os homicídios, o que justifica os casos de impunidades. “Além disso, as investigações dependem das provas periciais recolhidas nas primeiras 48 horas após um assassinato. Depois disso toda a cena do crime pode ser modificada”. O delito deveria ser investigado pela delegacia do bairro onde ocorre o crime. Mas as DPs não funcionam à noite nem em finais de semana. “As duas delegacias de plantão, com equipes limitadas, é que informam as delegacias dos bairros na segunda-feira, muito tempo depois do ocorrido, o que dificulta a identificação da prova material e a autoria do homicídio”. O promotor acrescenta que quando o crime é esclarecido há uma tramitação demorada, com direito a apelações e recursos. “Tudo culpa de uma legislação antiquada de 1941”. No Brasil, segundo ele, os advogados têm o direito de apelar ao Supremo Tribunal Federal, até mesmo quando o réu é confesso. Wendell Beetoven concorda com a tese de que a impunidade decorre também da falência do sistema prisional do Estado. “O regime aberto deveria ter colônias agrícolas, com um sistema rígido, com atividades direcionadas dentro dos próprios presídios”.
O juiz Henrique Baltazar estima que 15% dos presos que cumprem regime semiaberto no Presídio João Chaves não comparecem regularmente. “Lá temos 270 presos na ala masculina. Tenho certeza que boa parte deles não se apresenta no horário noturno como determina a lei”. Wendell estima que há cinco mil mandados para a prisão de criminosos expedidos pela justiça, “mas não há execução da maioria das penas”.
O promotor cita os dados estarrecedores divulgados pelo Mapa da Violência, produzido pelo Instituto Sangali. “No último levantamento nacional realizado pelo instituto em 2011, a Grande Natal apresenta uma taxa de 40 homicídios para cada cem mil habitantes. Já São Paulo, uma capital muito maior, tem hoje uma taxa de 10 para cada cem mil”.
Família luta por condenação há quase dez anos
O caminhoneiro Jonas Carvalho Lira também reclama justiça há quase dez anos. Ele acusa o fazendeiro José Joaquim dos Santos, conhecido como “Bimba”, de ter assassinado o irmão Vicente de Paula Lira, em Lagoa de Velhos. O roubo de um touro, de propriedade da vítima, teria sido o motivo do homicídio cometido na noite de 23 de junho de 2003 quando Vicente retornou a casa. “Ele era um idoso que foi morto barbaramente dentro de casa pelas costas, com um golpe de uma barra de ferro. Queremos que se faça justiça, que prendam este homem que vive fazendo até festas em frente a nossa casa atualmente”, pede Jonas, que percorreu várias instâncias com objetivo de exigir o cumprimento da pena pelo assassino. Segundo relatos da família Lira, José Joaquim ameaçou Vicente quando soube que foi acusado do roubo. “Quando foi roubado, meu irmão foi imediatamente atrás de saber quem teria pego o animal. Descobriu que o touro tinha sido vendido por “Bimba” e o denunciou à polícia. Antes de ser preso e julgado pelo roubo, jurou matar Vicente e assim o fez”. José Joaquim foi preso por homicídio em 2007 e condenado a uma pena de14 anos pelo assassinato, mas logo conseguiu sair para o regime semiaberto. “Ele nunca passou um dia sequer dentro da cadeia”, diz Jonas.
Ordem de Prisão
A família da vítima soube que foi expedida em junho deste ano uma ordem de prisão para José Joaquim pelo juiz de São Paulo do Potengi. “Estranhamos o fato da ordem vir dessa comarca”. O certo, segundo ele, seria a justiça de São Tomé, comarca responsável pelo processo, expedir a ordem para a Delegacia de Capturas (Decap). Desde que foi expedido o novo mandato de prisão, Jonas Lira tem feito tem feito uma via crucis semanal para saber quais as providências da polícia para o caso. “Toda semana eu ligo para a delegacia para saber quando irá prender aquele assassino e ladrão”. A resposta que recebe dos agentes é de que a delegacia ainda não recebeu a notificação e que nada podem fazer. “Cheguei a ouvir deles de que se eu soubesse onde “Bimba” estava eu deveria avisar para que eles fossem prendê-lo. Tudo que eu sei é que ele está em Lagoa de Velhos, fazendo festas, bebendo com os amigos em frente a nossa casa e ameaçando muita gente, dizendo até que já matou um. Toda a nossa família está indignada e repugnada com a atitude da polícia e da lei que nada fazem para levar este criminoso de volta para grades. Tudo que pedimos a eles Justiça em nome de Vicente contra este crime hediondo”.
Sistema ajuda a falta de punições
Boletins de ocorrência que nunca se transformam em inquéritos, denúncias arquivadas, sobrecarga do Judiciário e colapso no sistema prisional são apontados como algumas justificativas para a ausência do castigo a assassinatos cometidos na Grande Natal.A polêmica lei de progressão de pena, em vigor desde 2007, para muitos, grande vilã do sistema penal brasileiro, determina que os condenados podem progredir para o regime semiaberto de 2/5 da pena quando cometem crimes hediondos e para 1/6 nos demais delitos, desde que tenham bom comportamento e não respondam a outros processos. Números da Justiça do Rio Grande do norte indicam que há atualmente 789 processos por homicídios em andamento nas varas criminais da Região Metropolitana de Natal. “Não estão computados os milhares de Boletins de ocorrências em que não se transformam em inquéritos”, informa o juiz da 12ª Vara de Execuções Penais, Henrique Baltazar.
Diante de uma mesa entulhada por processos, o juiz compreende a indignação dos familiares das vítimas. “Entendo o sentimento daqueles que perdem um parente vítima de um assassinato, mas a lei deve ser obedecida pelos juízes. Na realidade, as famílias, mais do que justiça, desejam que os culpados apodreçam na cadeia”. Henrique Baltazar explica que o Judiciário trabalha atualmente com um número muito menor de magistrados do que deveria. “Muitos juizes estão trabalhando em duas varas com cerca de seis mil processos em cada. Há muita morosidade e além da falta de juizes, há também um déficit de funcionários. É urgente a realização de concurso público pelo Tribunal de Justiça, mas não há orçamento para isso. Esse argumento não justifica, mas explica a lentidão nos julgamentos dos processos criminais”, assinala.
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