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O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, testou mais uma vez os limites da sua caça aos imigrantes sem documentação e invocou neste sábado a controversa Lei do Inimigo Estrangeiro (The Alien Enemy Act, em inglês) de 1798, que permite monitorar, prender e deportar cidadãos de “países inimigos” de forma rápida e sem precisar seguir o devido processo legal das cortes migratórias. Adotada três vezes no passado, todas durante conflitos deflagrados, o uso da legislação como arma secreta para o seu plano de deportação em massa já havia sido antecipado pelo O GLOBO. Esta é a primeira vez na História que a lei é invocada em um período de paz. Estima-se que, ao todo, 11 milhões de migrantes estejam em situação irregular no país, dos quais 230 mil são brasileiros.
Na declaração por meio da qual justificou a medida, Trump mencionou expressamente a Venezuela e a organização criminosa Trem de Aragua — recentemente incluída pelo governo americano na lista de cartéis denominados como organizações terroristas. O republicano sugeriu uma relação do grupo criminoso com as autoridades venezuelanas, no que se referiu como “Estado criminoso híbrido”.
“Ao longo dos anos, as autoridades nacionais e locais venezuelanas cederam um controle cada vez maior sobre seus territórios para organizações criminosas transnacionais, incluindo a TdA”, diz a declaração de Trump. “O resultado é um Estado criminoso híbrido que está perpetrando uma invasão e incursão predatória nos Estados Unidos e que representa um perigo substancial para os Estados Unidos.
A menção à organização venezuelana e invocação da lei ocorreu horas após um juiz federal em Washington ter impedido preventivamente o presidente de aplicar a legislação para deportar cinco venezuelanos que estão sob custódia das autoridades federais de imigração e acreditava-se que seriam submetidas a um processo acelerado, sem as devidas garantias — grupos de proteção aos direitos civis provocaram a justiça alegando “risco iminente” de aplicação da lei e disseram que os homens em questão não têm vínculos com o Trem de Aragua.
“Dadas as circunstâncias exigentes de que [o tribunal] foi informado Nesta manhã, determinou-se que uma ordem imediata é justificada para manter o status quo até que uma audiência possa ser estabelecida”, escreveu o juiz James Boasberg em sua ordem, que previne a deportação dos venezuelanos por 14 dias.
Com menos de dois meses de governo, o decreto surge na esteira de uma série de medidas que prepararam o terreno para a sua imposição, como o anúncio de voos com imigrantes indocumentados para Guantánamo, prisão militar americana em Cuba. Em janeiro, Trump orientou autoridades do centro de detenção para que a preparassem para receber até 30 mil migrantes em situação irregular.
Trump havia avisado a autoridades que decretaria a lei em 3 de fevereiro, segundo a agência Reuters, mas o anúncio foi postergado até esta semana. No seu discurso de posse, em 20 de janeiro, ele ameaçou invocá-la, mas acabou dando preferência para outros decretos anti-imigração.
Entre eles, Trump declarou emergência nacional na fronteira sul, o que permitiu alocar mais recursos e mobilizar 1,5 mil soldados das Forças Armadas para controlar o fluxo de entrada no país — número que, segundo um memorando, poderia ser expandido para 10 mil. O republicano também designou carteis de drogas como organizações terroristas, parte do seu amplo esforço de militarização da agenda anti-imigração. A estratégia inclui, ainda, o uso de aviões militares em deportações e de instalações militares para deter imigrantes indocumentados.
Contestação jurídica
Com a imposição da Lei de Inimigo Estrangeiro, o conjunto de medidas anti-imigrantes de Trump ganha contornos ainda mais preocupantes do ponto de vista humanitário. Embora ainda possa ser alvo de contestações na Justiça, a invocação da lei é parte da prerrogativa do presidente americano — diferentemente de medidas como o fim da cidadania a filhos de imigrantes irregulares ou com visto temporário, cuja mudança exige uma emenda constitucional e, por isso, foi temporariamente suspensa por um juiz de Seattle e levada à Suprema Corte.
De acordo com seu texto, a lei pode ser invocada em tempos de “guerra declarada” ou quando um governo estrangeiro promove uma “invasão” ou uma “incursão predatória” contra o território americano. Trump argumenta que os EUA são vítimas de uma invasão de imigrantes promovida por facções criminosas latino-americanas. Um ponto que pode ser alvo de contestação jurídica é o fato de que a legislação exige que o ataque seja cometido por um Estado. O magnata e seus aliados, porém, alegam que os cartéis de drogas atuam como governo de facto em certos países.
Em entrevista ao GLOBO em janeiro, Daniel Tichenor, professor de Ciência Política na Universidade do Oregon, explicou que a lei evoca o Artigo 2 da Constituição, que atribui ao presidente a responsabilidade de repelir uma invasão estrangeira, enquanto o Congresso que determina um estado de guerra. Ou seja, cabe apenas ao republicano decidir se a entrada de imigrantes pela fronteira configura ou não uma invasão nos termos da Lei de Inimigo Estrangeiro.
Por outro lado, a Suprema Corte — com uma maioria de juízes conservadores graças às nomeações feitas por Trump no primeiro mandato — pode declarar a medida inconstitucional, mas o precedente não é favorável. Historicamente, “os tribunais têm usado a ‘doutrina da questão política’ para evitar a resolução de reivindicações que tocam em questões de guerra e paz (…) ou de política externa”, aponta Katherine Yon Ebright, conselheira do Brennan Center, em um artigo.
O Globo
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