Lucio Dalla não era conhecidíssimo no Brasil. “Caruso”, sua canção mais famosa, até que fez bastante sucesso por aqui no começo dos anos 90, em sua própria voz ou na de Luciano Pavarotti. Também era o autor de “Gesù Bambino”, que ganhou uma versão em português, “Minha História”, assinada por seu amigo Chico Buarque.
Apesar disto, sua morte súbita na semana passada, a três dias de completar 69 anos, não mereceu muito destaque na imprensa brasileira.
Já na Itália não se fala em outra coisa. Dalla tinha entre seus conterrâneos o mesmo status que Chico tem por aqui. Seu desaparecimento já seria comoção suficiente para parar o país. Mas aí estourou um escândalo, e bem no dia de seu funeral na catedral de Bolonha, sua cidade natal. Lucio Dalla era gay.
Um único leigo falou durante a missa: o ator e poeta Marco Alemanno, de 32 anos. Primeiro o rapaz recitou a letra de “Le Rondini” (“As Andorinhas”), um dos muitos hits do falecido. Depois disse que havia crescido ao lado dele, e o agradeceu por tudo que ele lhe deu e ainda dá. E então rompeu num pranto convulso, enquanto que os padres ao fundo faziam cara de pôquer.
Coube à jornalista Lucia Annunziata, uma das mais respeitadas da Itália, colocar os pingos nos i em seu programa de TV. “O funeral de Lucio Dalla é um dos exemplos mais fortes do que significa ser gay na Itália. Você vai à igreja, fazem os seus funerais e o enterram no rito católico. Basta você não dizer que é gay. É o símbolo do que somos. Há permissividade, contanto que olhemos para o outro lado”.
A homossexualidade de Dalla não era exatamente um segredo guardado a sete chaves. Muita gente sabia. Simplesmente não se comentava. O próprio Dalla jamais veio a público para dizer se gostava disto ou daquilo, mas também não se escondia. Foi visto constantemente na companhia de Alemanno ao longo dos últimos dez anos.
Mas as palavras de Annunciata tiveram repercussão imediata, para o bem e para o mal. Muita gente concordou com ela: de fato, a Itália é o país mais atrasado da Europa Ocidental em termos de direitos igualitários. Enquanto que os também católicos Espanha e Portugal já legalizaram o casamento gay, na Itália não existe sequer a união civil entre pessoas do mesmo sexo. A influência avassaladora da Igreja vai muito além dos muros do Vaticano.
A jornalista também está sendo acusada de arrancar o compositor à força do armário, quando ele não está mais aqui “para se defender”. O próprio empresário de Dalla correu para dizer que Alemanno era só um bom amigo, e que a moça vista ao seu lado durante o serviço fúnebre é sua “companheira”.
Querendo ou não, o fato é que Dalla provocou, depois de morto, uma discussão muitíssimo necessária em seu país. A Itália tem uma relação hipócrita com seus gays e lésbicas: “vocês podem tudo, contanto que jamais se assumam à luz do dia”. Aliás, essa hipocrisia se estende a muitos outros aspectos da vida cotidiana.
E é parecidíssima, obviamente, com a que vigora no Brasil. Por aqui, volta e meia morre uma celebridade que vivia sua sexualidade na sombra, e ai daquele que comentar em voz alta as preferências do morto: estará lhe ofendendo a honra.
Lucio Dalla vinha de uma geração que aprendeu que ser gay era crime, e morava num país onde seu amor era considerado pecado mortal. Enquanto vivo, preferiu não se expor nem levantar bandeiras. Mas agora, seja lá onde estiver, duvido que não ache graça dessa polêmica toda. Era um grande artista, e os artistas amam a liberdade.
Veja Marco Alemanno lendo “Le Rondini”
http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=iZaTI79M60Y
Fonte: Tony Goes para F5
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