Na data em que se comemora o Dia dos Pais, a edição de hoje de O Poti, faz menção àqueles que não têm um pai para chamar de seu. A reportagem de Simone Silva relata histórias de potiguares que estão envolvidos em processos de investigação de paternidade, prova científica e cabal do vínculo biológico.
Somente no primeiro semestre deste ano, foram registrados nas comarcas de Natal, Parnamirim e Mossoró 437 processos, o que representa entre 15% e 20% dos casos registrados nas varas de família. Em 2011, o número nessas jurisdições chegou a 847.
Segundo a análise do psicólogo Eudes Basílio, a ausência paterna produz reflexos durante toda a vida do indivíduo, podendo comprometer as relações sociais futuras. Basicamente, existe uma influência na construção de identidade de gênero, que segundo o profissional se torna mais clara quando há o convívio com pai e mãe. Além de haver também interferência no estabelecimento de vínculos afetivos, uma vez que o indivíduo que sofre com a ausência paterna pode se sentir culpada pela rejeição.
A reportagem mostra a história de Maíva Patrícia da Rocha, de 36 anos, nascida de um relacionamento de aproximadamente um ano entre sua mãe, uma potiguar, e um aspirante paulista da FAB, que atuou em Natal no início dos anos 1970.
No depoimento da personagem, marcas de uma vivência marcada pela ausência do pai biológico. Fato realçado nos simples gestos de preencher um formulário ou fazer uma inscrição e ter de deixar um espaço em branco e vazio, até mesmo a vergonha de responder a pergunta sobre o “nome do pai” e não ter uma identidade a apresentar”.
Segue a matéria na íntegra:
O desabafo ao lado não é de uma criança, mas de uma mulher que começou sua luta para ser reconhecida pelo pai já adulta, aos 27 anos, e cuja batalha teve um princípio de desfecho quase 10 anos depois. À exemplo dela centenas de pessoas, menores ou adultas, no Rio Grande do Norte, mais que um encontro em família gostariam de neste domingo terem seu vínculo biológico paterno reconhecido, um direito garantido pela Constituição Federal – que proclama como dever do Estado assegurar à criança a convivência familiar – e ainda pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que decanta ser “indisponível e imprescritível” o direito personalíssimo de reconhecimento do estado de filiação.
De janeiro a junho deste ano já tramitaram nas comarcas de Natal, Parnamirim e Mossoró 437 processos de investigação de paternidade, ações que correspondem entre 15% e 20% das demandas das varas de família. A frieza dos números mascara histórias de distância entre pais e filhos, que segundo o psicólogo Eudes Basílio Júnior pode trazer consequências para toda a vida, influenciando na qualidade das relações sociais daqueles que não conhecem sua raiz paterna. “A ausência pode ser um facilitador de desequilíbrio, principalmente quando o individuo sabe que o pai existe e não atende a sua demanda de afeto”, garante. Da necessidade de suprir esta lacuna emocional vem a buscar pelo parentesco.
Eudes Júnior explica que a ausência paterna pode interferir em duas vertentes importantes: a construção de identificação do gênero, que nasce da observação do pai e da mãe; e da criação de vínculos afetivos, o apego que se dá dentro do convívio familiar. Sem a figura paterna pode surgir sentimento de carência e dúvida levando a criança a sentir-se culpada pela rejeição. “Mãe não substitui pai e pai não substitui mãe. A criança não está envolvida no processo de separação, só os adultos”. O especialista em psicologia escolar e psicopedagogia alerta que timidez, agressividade, baixa estima e até isolamento social podem ter origemna ausência de um “apego seguro”.
DireitoTitular da 1ª vara de família central, a juíza Eveline Guedes Lima reconhece que “todos têm o direito saber quem é seu pai biológico, ainda que já exista a filiação registral e sócio-afetiva distinta”. Há 10 anos na função, ela já julgou centenas de processos de identificação de paternidade, cuja maior parte das decisões se baseia no teste de vínculo genético, popularmente conhecido como exame de DNA. Cerca de 90% dos casos chegam à justiça via atendimento jurídico gratuito (defensorias públicas ou práticas forenses de instituições de ensino superior) sendo, portanto, a maioria dos requerentes pertencentes a classes menos favorecidas.
“Os filhos sem nome do pai em suas certidões são, em sua maioria, fruto de relações esporádicas. Então o pai não tem certeza e não reconhece de imediato o filho”, conta a magistrada. No entanto, de acordo com sua experiência 95% dos processos são resolvidos na primeira audiência, promovida por conciliadores. Outra parte, garante o advogado João Arthur Silva Bezerra também têm solução nos escritórios de advocacia. Estes, normalmente, envolvem pessoas mais abastadas. “A situação não chega ao juiz e se resolve numa conversa prévia onde há disposição voluntária das partes, inclusive submetendo o suposto pai ao exame de DNA”. A conclusão de todo processo dura cerca de 30 dias.
Em sua experiência, Bezerra garante que seus clientes buscam mesmo o reconhecimento, embora a maioria das ações venha concomitantemente ligada a arbitração de pensão alimentícia. “São adolescentes, por exemplo, que têm trauma por não ter o nome do pai em sua certidão e isso afeta sua vida”. Há casos, conta, que a própria mãe esconde, por mágoa principalmente, a identidade do pai da criança. “Nessa situação a mãe só pensa nela, na sua dor. Se ela pensar no filho, não faz isso”, atesta o psicólogo Eudes Júnior.
Fato é que todo indivíduo tem direito de receber o nome do pai e da mãe e de ser sustentada, alimentada e educada por eles. Além do parentesco ser uma relação de sangue, a identificação da paternidade é fundamental na formação de um indivíduo, sendo seu referencial de existência. A origem de cada um, muito mais que apenas um nome num documento, um dever jurídico, passa pela não negligência paterna, para que não só uns, mas todos possam festejar a data do Dia dos Pais.
Um sonho pela metade: a história de Maíva
O texto de abertura desta matéria pertence à secretária Maíva Patrícia da Rocha, de 36 anos. Fruto de um relacionamento juvenil e fugaz – de cerca de um ano – entre sua mãe, potiguar, e um aspirante paulista da FAB, em trânsito em Natal no início dos anos 1970, ela ostenta em todos os documentos o que sempre teve na vida: a ausência paterna. A cada necessidade de preencher um formulário ou fazer uma inscrição, o constrangimento de deixar um espaço em branco e vazio, a vergonha de responder a pergunta: “nome do pai” com um “não tenho”. Nem que quisesse poderia esquecer seu vínculo sanguíneo. Seu estranho nome é a junção da denominação do pai e da mãe. “Afago e abraço me foram negados por ele”, lamenta.
A existência de Maíva para o possível genitor se deu por forma de carta. Durante um ano sua mãe escreveu enviando fotos e falando do desenvolvimento da menina. Tudo sem resposta. Aos três anos de idade sua responsável legal fez a primeira tentativa de confirmação, buscando um advogado. Na época, um acordo feitopelo advogado para que o processo não fosse adiante, o que impediria a subida de patente do aeronauta, garantiu a compra de algumas roupas e uma festa infantil, tudo, segundo sua mãe, com a promessa de que haveria o reconhecimento legal. “Lembro que ela me perguntou se eu queria conhecê-lo, e eu disse que ia fugir se ela fizesse isso. Quando criança eu tinha raiva dessa história de pai”, lembra Maíva.
Embora possuindo a figura de um pai postiço – na verdade o marido de sua tia, considerada sua mãe de criação – foi na adolescência que surgiu na secretária a curiosidade de conhecer sua origem. “Via coisas em mim que não identificava em ninguém da minha família, então aos 19 pensei em entrar novamente na justiça”. Mas foi só aos 27 anos que ela “se deu de presente” a busca do pai. A alta patente dele dificultou a obtenção de informações, que ela só conseguiu em Brasília, graças a intervenção de uma amigo, assessor parlamentar. Na ocasião já sabia que o militar tinha outra família e pertencia a uma classe social bem distinta da sua. “Nesse momento eu só queria mesmo conhecê-lo, nem buscava ser reconhecida como filha”, garante.
IdentidadeSegundo Maíva, a conversa de três minutos a fez ficar deprimida durante três dias. “Liguei para a base e já esperava que ele fosse frio. Ele descartou de cara ser meu pai e me mandou procurar saber com minha mãe a verdade. Ele foi grosso”. Maíva Rocha resolveu pressionar a genitora, que confirmou: “tenho certeza que é ele”. No dia seguinte entrou na justiça por meio da prática jurídica gratuita de uma universidade – o ano era 2003. O processo praticamente só andou em 2009 e terminou sendo transferido para São Paulo, onde seu provável pai mora e a quem ela credita a influência para isso ter ocorrido. “Fiquei ciente que seria difícil”. Uma conhecida lhe encaminhou para uma advogada na capital paulista, que pegou sua causa sem lhe cobrar. Foi graças à ajuda de outros amigos que foi fazer seu exame de DNA, no fim de 2011.
Quando chegou ao laboratório Maíva Patrícia da Rocha reconheceuo pai pelas fotos que já vira na internet. Sentou atrás do militar e o observou. Este só soube quem era sua suposta filha quando foi chamado pela técnica. “Antes de realizar o exame a perita disse que era muito estranho esse processo estar lá”. Ainda na sala de espera, o aeronauta, hoje brigadeiro-do-ar, puxou conversa, fez várias perguntas à secretária, a última delas: “O que você quer de mim?”, “Eu disse: reconhecimento”.
Ao final, um simples aperto de mão. “Observei ele até o estacionamento e fiquei surpresa quando ele, que tem 63 anos, subiu numa moto. Descobri de onde vinha minha paixão por essas máquinas”, conta. Meses antes ela havia ficado 11 dias numa UTI, sem perspectiva de sair com vida, em virtude de um acidente de moto.
“Deus estava me satisfazendo o desejo do meu coração em me deixar mesmo que discretamente olhar para ele e gravar suas expressões e seu jeito. Agradeci pela oportunidade. Eu realizei o meu sonho nesse dia. Aos trancos e barrancos o que queria era conhecer ele. E eu consegui”.
Na carta que escreveu em dezembro passado para as duas irmãs contando sua história, Maíva desabafou. “Creio que vocês já sabem da minha existência, existência esta que foi apagada da vida do meu pai. Digo pai porque eu e ele sabemos a verdade, verdade essa que de todos os modos está sendo deturpada, violada e modificada, e pela qual eu não tenho mais forças pra lutar, pois fui vencida realmente pelo cansaço, e pela tristeza”. O exame de DNA excluiu a paternidade, embora Maíva Rocha tenha certeza do erro.
Projetos possibilitam reconhecimento paterno
Dois projetos, o “Pai Legal” e o “Pai presente”, vêm devolvendo a centenas de crianças potiguares o direito à filiação paterna. O primeiro é uma iniciativa da promotoria de Natal e embora tenha surgido em 2009, funciona efetivamente desde o ano passado, período no qual pelo menos 220 crianças puderam obter seu reconhecimento legal e direitos, afetivos ou financeiros, vinculados. O segundo é uma iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) através do provimento 16, que busca reduzir o número de pessoas sem paternidade reconhecida no país.
A segunda promotora de justiça da capital, Rosa Lígia Rosso Nunes Flor, explica que o Pai Legal funciona junto às escolas públicas municipais, sendo realizado por zonas de atuação. Partindo de dados fornecidos pelas próprias instituições de ensino, são identificados estudantes sem registro do genitor. Em Natal 10 promotores atuam no projeto. Primeiro vão conversar com os pais na escola para relatar a importância de constar no registro dos filhos o nome do pai. “Depois vamos averiguar a existência deles, convidamos a mãe a abrir um processo, pedimos documentos e indicação de onde podemos achá-lo. Então o chamamos”, explica.
Na maioria dos casos, segundo ela logo no início, o pai – que não possuía qualquer contato com o filho – faz o reconhecimento e se estabelece o provimento legal, encaminhando ofício para o cartório para que proceda o registro correto. “Ainda há muito preconceito quando a pessoa só possui o nome da mãe”, conta a promotora. Segundo dados nacionais estima-se que no Brasil existam entre 3,5 e 5 milhões de alunos das redes pública e privada que não têm o nome do pai na matrícula. Em Natal são cerca de 10 mil casos, segundo Fátima Soares de Lima, juíza coordenadora no RN do Pai Presente.
O programa desenvolvido por Tribunais de Justiça de todo o país desenvolve no Rio Grande do Norte ações pontuais em parcerias com diversos órgãos como as defensorias públicas e até Câmaras Municipais. Graças a ele o acesso à justiça foi viabilizadopermitindo que aja o reconhecimento. Através dele as mães cujos filhos não possuem o nome do pai na certidão de nascimento poderão recorrer a qualquer cartório de registro civil para dar entrada no pedido. O mesmo procedimento pode ser adotado pelo pai que desejar espontaneamente fazer o registro do seu filho. “O Pai Presente abriu um enorme espaço para regularizar muitas situações que antes era preciso judicionalizar”, revela Fátima Lima.
No cartório é necessário preencher um termo com informações pessoais, do filho e do suposto pai, conforme modelo fornecido pela Corregedoria Nacional, além de apresentar a certidão de nascimento. Pessoas com mais de 18 anos também podem dar entrada no pedido diretamente nas serventias, sem a necessidade de estarem acompanhadas da mãe. O próprio registrador deve enviar o pedido ao juiz competente, que notificará o suposto pai a manifestar-se em juízo se assume ou não a paternidade.
Duas histórias de paternidade
A dona de casa Maria de Fátima Freitas aguarda o resultado de seu exame de DNA para reconhecimento de paternidade. Sua história é atípica. Sexta filha de um casal não legalmente casado, perdeu o pai quando tinha três meses de vida, vítima do álcool. Por este motivo terminou sem o sobrenome “Costa” em sua certidão de nascimento. Só aos 21 anos resolveu regularizar a situação. “Todos os meus irmãos tem o sobrenome, menos eu. Quando era criança lembro de ficar triste por não ter a quem entregar os cartões que fazia. Os outros tiveram contato com ele, eu não. Eu quero ter uma identificação, eu tive um pai. Aprendi a conviver com ele, mas fica o vazio”.
Um administrador (que preferiu manter seu nome sob sigilo) sempre desconfiou que uma de suas filhas, fruto de um de seus longos relacionamentos não fosse sua filha. No entanto só as 16 anos resolveu tirar a dúvida e, sem avisar a ninguém submeteu-se a um exame de DNA. Para o comparativo pegou fios de cabelo da filha e da ex-mulher que pudessem servir ao teste que,por fim confirmou sua suspeita e excluiu sua paternidade. O resultado atendeu uma necessidade própria. Ele só contou o ocorrido a um irmão. “Resolvi continua a ser o que eu já sou há 16 anos, o pai. É assim que eu me sinto”.
Sabia mais
A Constituição Federal de 1988 igualou os filhos havidos ou não da relação de casamento, não havendo mais qualquer restrição para que se opere o seu reconhecimento.
Processo de reconhecimento
– Todo indivíduo tem direito de conhecer suas raízes, de saber qual o seu parentesco com outras pessoas. Caso o pai se recuse a reconhecer um filho, parte-se para um processo que se chama Ação de Investigação de Paternidade que pode ser movido pela criança, representada por sua mãe quando ela é menor de idade, contra o suposto pai que nega o reconhecimento. Outra situação se aplica quando o filho atingiu a maioridade e pode ele próprio iniciar o processo.
– O primeiro passo é a busca por um advogado. Quem não pode pagar um deve buscar a justiça gratuita das defensorias e práticas jurídicas. É de suma importância fornecer duas informações cruciais: o nome e o endereço onde o suposto genitor possa ser localizado. O homem é chamado para tomar conhecimento da solicitação. Caso não aceite a paternidade parte-se para o processo de instrução, com a solicitação do DNA.
– Uma vez provada a filiação através do exame, ele será obrigado pelo juiz a registrar e cumprir todos os deveres relacionados à paternidade, como, por exemplo, pensão alimentícia e herança. A sentença tem eficácia absoluta, valendo contra todos, ao declarar o vínculo de filiação.
– No entanto ele pode se negar a fazer o exame. Ainda sim o processo segue. “O fato de se eximir dele é um indício forte que será levado em consideração”, explica Eveline Guedes, da primeira vara de família de Natal. Antes do DNA levava-se em consideração, entre outros fatores, as “semelhança fisionômicas”, prova testemunhal, documentos e exames menos específicos de sangue. Um processo deste tipo pode chegar até o Supremo Tribunal Federal (STF) pelo assunto tratar-se de matéria constitucional.
Estatísticas
Investigação de paternidade
Casos que chegaram à justiça
Período Janeiro a Dezembro de 2011
Comarca de NatalCentral – Seis varas – 143 casos
Zona Sul – Duas varas – 18 casos
Zona Norte – Duas varas – 122 casos
Comarca de Mossoró – Quatro varas – 418 casos
Comarca de Parnamirim – Duas Varas – 146 casos
Total de casos – 847
Investigação de paternidade
Casos que chegaram à justiça
Período Janeiro a Julho de 2012
Comarca de NatalCentral – Seis varas – 162 casos
Zona Sul – Duas varas – 19 casos
Zona Norte – Duas varas – 81 casos
Comarca de Mossoró – Quatro varas – 101 casos
Comarca de Parnamirim – Duas Varas – 74 casos
Total de casos – 437
Fonte: Diário de Natal/ O Poti
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