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A ideia de contar o tempo a partir do nascimento de Jesus é mais recente do que parece. Só começou 5 séculos após a crucificação. Se você voltasse no tempo para 400 d.C, por exemplo, e perguntasse para algum cidadão do Império Romano em que ano vocês estão, ele responderia: “ano 116”.
Nessa época, o cristianismo já era a religião oficial de Roma. A Igreja, porém, usava outro marco para estabelecer a contagem do tempo: o início do mandato de Diocleciano, imperador romano que, pelo calendário de hoje, governou entre 284 d.C. e 305 d.C.
Não era por amor a Diocleciano que a Igreja usava o início de seu reinado como marco zero. Muito pelo contrário. Diocleciano foi um grande perseguidor de cristãos. Depois que a religião se tornou oficial, em 380 d.C., a época de Diocleciano passou a ser chamada de “Era dos Mártires” – por conta dos cristãos que tinham morrido nas mãos do imperador. O início da Era dos Mártires, então, passou a marcar a contagem do tempo.
O marco era o início do governo de cada imperador; por essa contagem, Cristo nasceu no ano 14, o 14º do reinado de Tibério.
Antes disso, o marco era o início do governo de cada imperador; por essa contagem, Cristo nasceu no ano 14, o 14º do reinado de Tibério. Outra forma de contar o tempo era a partir da fundação de Roma, segundo a qual Jesus nasceu no ano 753, o ano do centésimo quinquagésimo terceiro aniversário da cidade. Essa data de fundação, 753 a.C., é lendária – não se sabe quando Roma surgiu, pelo menos não com essa precisão toda, mas essa é outra história.
O que importa aqui, de qualquer forma, é que o ano do nascimento de Jesus simplesmente não era usado pela Igreja.
Isso só começou a mudar no século 6, pelas mãos de um monge chamado Dionísio, o Exíguo (“exíguo” no sentido de “humilde”). Dionísio não era exatamente um homem humilde: era considerado o maior intelectual da cede da Igreja, em Roma. Por conta disso, o papa João I (470 d.C.–526 d.C.) encomendou a Dionísio um recálculo dos calendários, para determinar em qual dia de abril a Páscoa deveria ser celebrada nos anos seguintes (não havia um consenso sobre qual seria o dia exato para cada ano, como há hoje).
Dionísio, então, aproveitou para fazer uma mudança mais profunda. Além de calcular, de acordo com seus critérios, em quais dias a Páscoa deveria cair, ele fez um adendo: estipulou que aquele ano, o 241 da Era dos Mártires era, na verdade, o anno ab incarnatione Domini 525. Ou seja: o 525º ano após a “encarnação” do Senhor (“Domini”) em forma de ser humano. Com o passar dos séculos, essa forma de contar o tempo se universalizou – não que tenha sido da noite para o dia; Portugal só adotou o sistema no ano de 1400. A Rússia, em 1700.
A Igreja Ortodoxa seguiu usando outra contagem, uma derivação do calendário judaico cujo marco zero é a “origem do mundo”. Por esse sistema, Jesus teria nascido em 5500 a.M. (de anno Mundi).
Os próprios judeus, que escreveram o Velho Testamento, chegaram a outra conclusão. De acordo com sua interpretação dos textos sagrados, estamos hoje no ano 5780 – e a data que Dionísio estipulou para o nascimento de Cristo equivale ao ano 3760 do calendário deles.
Na Europa Ocidental, o uso da Era dos Mártires não foi substituído imediatamente pelo sistema de Dionísio. Com o esfacelamento do continente em diversos reinos, o normal voltou a ser usar a data de posse dos soberanos locais como marco zero.
O conceito de Dionísio só se popularizou mesmo na Europa a partir do século 8, por cortesia de Carlos Magno (742 d.C. – 814 d.C.) – além de conquistar boa parte do continente, ele apoiou os religiosos que defendiam a ideia de centralizar a contagem do tempo no nascimento de Jesus. E aí a ideia foi pegando, até se universalizar.
Muito bonito, a não ser por um detalhe: está tudo errado. Ninguém sabe quando Jesus nasceu.
O Novo Testamento não diz nada sobre. O que há são menções a personagens históricos cujas datas são conhecidas por outras fontes. O Evangelho de Lucas, por exemplo, diz que João Batista começou a pregar no ano 15 do reinado de Tibério. O de Mateus, diz que Jesus nasceu no tempo de Herodes, o Grande, rei judeu vassalo de Roma, e que morreu, sabe-se hoje, no ano 4 a.C. Lucas, por outro lado, diz que Jesus nasceu quando Quirino, um político romano, comandava a Síria. Seu governo, porém, começou apenas no ano 6 d.C.
Dada tamanha imprecisão dos evangelhos, simplesmente não dá para especificar a data do nascimento de Jesus – até o papa Bento 16 assumiu a existência desse problema, em 2012. Dionísio, porém, decidiu cravar o ano 14 do reinado de Tibério como “ano zero”.
Opa: Zero? Não… O número zero ainda não era usado na Europa – só viria bem depois, do Oriente. Não que os europeus não soubessem o que “zero” significa, mas as contagens, nos algarismos romanos da época, sempre começavam a partir do número I (um).
O que vem depois do ano 1 a.C., então, não é o ano 0 a.C. É o ano 1 a.C. Um erro grosseiro, já que bebês não nascem com um ano de idade. Mas é assim que ficou. Com esse pecado original na contagem, a segunda década da Era Cristã começou só no ano 11 d.C., sendo que o último ano da primeira década foi o ano 10 a.C. E o problema segue. O terceiro milênio só começou em 2001, não em 2000. E a década de 20 do século 21 só começa em 2021, não em 2020.
Mas, quer saber? Isso não tem importância. Só não houve um ano zero por uma gafe matemática, digamos assim. Se você sempre entendeu que os anos 20 de 100 anos atrás – o das dançarinas de cancã, da Semana de 22 e do crash da bolsa de NY – começou em 1920, não tem nada demais em considerar que os novos anos 20 começaram agora. Aproveite.
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