Saúde

‘É surpreendente ver que tantas mutações estão aparecendo ao mesmo tempo em tantos lugares’, diz uma das principais referências globais em estudos de imunologia

Foto: Kike Calvo/AP

Uma das principais referências globais em estudos de imunologia, a pesquisadora Akiko Iwasaki, da Universidade Yale (EUA), se debruça há um ano em pesquisas que possam ajudar a combater a covid-19, mas teme que a pandemia ainda esteja bem longe do fim. Suas maiores preocupações agora são com as variantes que já demonstraram a capacidade de reinfectar quem foi contaminado anteriormente e com a desigual distribuição de vacinas pelo mundo.

Autora de trabalhos importantes – como o que mostrou que é possível prever, pela a carga viral na saliva de pessoas contaminadas com a covid-19, se elas vão desenvolver um quadro grave; e o que revelou por que homens têm quase duas vezes mais chance de morrer pela doença –, Akiko participa nesta quinta-feira, 4, às 11h, de webinar aberto ao público promovido pelo Instituto Serrapilheira.

A pesquisadora vai abordar o papel da ciência básica no enfrentamento de desafios concretos, como a covid-19. O evento marca o lançamento do Programa de Formação em Biologia e Ecologia Quantitativas, que o Serrapilheira promove com o objetivo de preparar futuros cientistas para a pesquisa transdisciplinar em ciências da vida. Akiko faz parte do comitê consultivo do programa.

Em entrevista exclusiva ao Estadão, a pesquisadora aborda os desafios que a pandemia ainda traz para a ciência – como o que faz as variantes mais potentes surgirem e os obstáculos para o desenvolvimento de tratamentos contra a covid. Ela explica também suas descobertas mais recentes e em quais aspectos é preciso investir para deixar o mundo mais preparado para futuras pandemias. Confira a seguir:

Como a sra. avalia o status atual da pandemia. Em um ano a ciência conseguiu desenvolver várias vacinas, mas elas ainda não estão amplamente distribuídas em todo o mundo. Ao mesmo tempo em que diversas variantes estão surgindo e alguns países, como o Brasil, ainda sofrem bastante com a doença. Ainda estamos muito longe de combater a covid-19?

Infelizmente, acredito que sim. Sem vacinas amplamente disponíveis em todo o mundo, será difícil alcançar imunidade de rebanho. Em alguns países há mais vacinas que em outros. Obviamente há uma disparidade no acesso à vacina em todo o mundo. Então, estou preocupada com a escassez de vacina assim como a iniquidade da distribuição.

Quais são os maiores desafios agora?

Os problemas são multifacetados. As medidas de saúde pública não são implementadas igualmente em todo o mundo, como o uso de máscaras, o distanciamento social, os hábitos de higiene. E a adoção de lockdown também varia muito, em alguns lugares foi muito tarde, em outros muito cedo, e é possível ver uma grande diferença na incidência das taxas de mortes dependendo do momento do lockdown. São todos fatores importantes que fazem com que alguns países sofram mais.

Em um de seus trabalhos mais recentes, a sra. discute o que a reinfecção significa para a pandemia. Acredita que as reinfecções são agora um problema maior do que se imaginava quando os primeiros casos apareceram?

Sim. Porque as variantes estão em alta em várias partes do mundo. Sabíamos que iriam ocorrer mutações, mas é surpreendente ver que tantas mutações estão aparecendo ao mesmo tempo em tantos lugares. E essas variantes parecem ser mais transmissíveis, em alguns casos mais fatais. Isso vai colocar um pouco em xeque os programas de vacinação, porque a imunidade induzida pelas vacinas pode não ser capaz de prevenir todas as infecções que poderiam ser evitadas se não fosse pelas variantes.

A sra. diz que é surpreendente ter tantas mutações aparecendo ao mesmo tempo. E a sensação é de que emergiram rápido demais, antes mesmo de termos a chance de vacinar as pessoas. Qual se imagina que seja a explicação para isso? Tem a ver com o fato de o vírus ainda estar se dispersando demais?

A resposta completa para essa questão ainda é desconhecida. Há alguns dados surgindo que apontam que pessoas que têm a imunidade comprometida e que estão infectadas por muito tempo acumulam mutações. As variantes que estão despontando podem estar vindo desses pacientes que estão infectados por um longo tempo com covid. Como essas pessoas não conseguem eliminar o vírus sozinhas, costumam receber plasma de convalescentes. Isso pode acabar eliminando o vírus, mas dá tempo para que as mutações se acumulem antes da eliminação. O vírus que é selecionado para escapar do plasma convalescente pode circular na população dando origem às variantes. Ainda não está claro quais são exatamente as fontes dessas variantes. Pacientes imunocomprometidos podem ser uma delas, porque tendem a acumular múltiplas mutações dentro de si. Se este for o caso, antes de tudo temos de entender a fonte das variantes para que possamos eliminar a fonte e também prevenir que futuras variantes aconteçam. É algo que ainda não entendemos muito bem, mas que pode ser um motivo pelo qual estamos vendo as variantes. É bem preocupante.

Cientistas brasileiros estão bastante preocupados que o cenário de descontrole da pandemia no País possa fazer com que o Brasil se torne um celeiro para o surgimento de novas variantes. Concorda com essa avaliação? Este tipo de situação em que o vírus circula livremente pode ser uma das explicações para o surgimento das cepas mais preocupantes?

Concordo. Quando a transmissão é galopante, novos mutantes podem surgir e se espalhar. É como colocar lenha na fogueira. No outono e inverno de 2020, a transmissão nos EUA foi galopante, mas tínhamos apenas um vírus. Agora, os EUA também têm as variantes. Eu me preocupo com outra onda e mais variantes se não controlarmos a propagação entre a população.

Um de seus trabalhos durante a pandemia foi mostrar que a quantidade de vírus na saliva pode predizer quão grave será a doença. Como isso funciona?

Entender o que faz uma pessoa ficar muito ou pouco doente é importante para os médicos poderem planejar um tratamento melhor. A saliva é um modo bem conveniente de dizer se uma pessoa pode desenvolver uma doença pior. É um dos fatores chave, além da idade, para predizer doença severa. E é fácil de coletar, mais do que amostras de nasofaringe, e são melhores em prever severidade. Imaginamos que o motivo é porque amostras de nasofaringe detectam os vírus do trato respiratório superior, que não é o que faz a pessoa ficar doente. O problema ocorre quando o vírus vai do nariz para o pulmão. E porque há um mecanismo que propele o vírus do pulmão todo até a boca, com tosse, por exemplo, a saliva acaba guardando essa informação que se mostrou chave para predizer a severidade da doença.

A sra. também desvendou por que a doença é pior em homens do que mulheres. O que faz com que eles tenham quase duas vezes mais chance de morrer que elas?

Focamos nas diferenças biológicas em homens e mulheres. E realmente vimos diferenças na forma como homens e mulheres respondem a esta infecção, especialmente no começo da infecção. Mulheres tendem a estimular melhor a resposta das células T (uma das células do sistema imune) que homens, que tiveram níveis mais baixos de ativação das células T. E isso também corresponde com o fato de homens desenvolverem doenças mais graves que as mulheres. Uma coisa interessante que vimos é que, com a idade, homens têm uma queda na ativação das células T. Já as mulheres, não. Mesmo quando as mulheres estão com 80 ou 90 anos, elas ainda estão bem em ativação dessas células. Acreditamos que isso pode ter a ver com o cromossomo X, que mulheres têm duas cópias e homens, só uma. E sabemos que alguns genes do cromossomo X são muito importantes para o sistema imune.

Esse pode ser um dos motivos pelos quais vemos casais em que os homens ficam muito doentes e as mulheres, não?

Pode ser um de muitos fatores que mudam a resposta imune, entre outras coisas.

Há alguns indícios de que as vacinas têm sido capazes de aliviar os sintomas das pessoas que continuam com problemas mesmo depois de terem tido covid. Estes casos também vêm se mostrando como um dos desafios da pandemia?

Há centenas de milhares de pessoas, se não milhões, que têm consequências de longo prazo da covid. Se isso é provocado por um vírus persistente ou algo mais, ainda não sabemos, mas certamente não é um evento raro. Mesmo pessoas jovens e saudáveis tiveram sintomas por longo tempo depois da covid. É um problema enorme. De fato, há exemplos de reinfecção e subsequente infecção que também deixam as pessoas doentes, mas estou falando de pessoas que tiveram apenas uma infecção e por um longo tempo ficaram doentes. Para esses pacientes, neste momento, não tem nenhuma boa terapia. Isso é especialmente aterrorizante nos jovens, capazes, atléticos, que nem ficaram doentes no começo da infecção e, de repente, passam a ter sintomas debilitantes. Não conseguem ir ao trabalho, não conseguem pensar direito, se lembrar das coisas. São tantas questões relacionadas ao cérebro que é devastador para essas pessoas. E para elas não existe nenhum tratamento.

Na verdade não existe tratamento para caso nenhum, não é?

Sim, ainda precisamos encontrar soluções para ambos os problemas: prevenir a doença com vacinas e tratá-la quando as pessoas pegarem. A melhor forma para lidar com isso é encontrar terapias para tratar precocemente, porque se passa muito tempo, o único tipo de droga que vai ajudar são corticosteróides, como a dexametasona, que só melhora os sintomas, mas não cura a doença, não mata o vírus. Se puder interferir bem cedo, seja com interferon ou com anticorpos monoclonais, seria possível prevenir a ocorrência de doenças mais severas. Novas drogas são necessárias, especialmente antivirais, mas de novo teria de ser para tratar muito cedo. Teria de ter um grande estoque de bons antivirais prontos para serem usados para dar para as pessoas que acabaram de ser expostas à covid e dar imediatamente, como ocorreu com o tamiflu (com a H1N1). Mas ainda não temos isso. E acho que já deveríamos ter.

Um dos tópicos que a sra. vai conversar com estudantes brasileiros é sobre como a ciência deve se preparar para as próximas pandemias. O que já aprendemos com essa?

Certamente aprendemos várias lições com essa pandemia que nos preparam para as futuras. As vacinas são realmente a história de sucesso, mas há outras coisas que poderíamos ter feito, como ter uma prateleira cheia de antivirais prontos para serem usados. São coisas que sei que a comunidade científica pode alcançar, mas ainda não houve esforço determinado nesse sentido e é algo que acho que podemos fazer para o futuro. E obviamente investir em ciência básica é a chave. Toda a tecnologia para desenvolver todas essas vacinas veio da ciência básica. E a curiosidade é o que direciona a pesquisa. Se parar isso, não haverá mais avanços. Tem de ter investimento para isso. E nem precisa ser especificamente para vacina, mas só de tentar entender melhor como o corpo responde a vírus, em geral, vai nos ajudar a fazer melhores vacinas no futuro. Vigilância é uma outra área que temos de melhorar, com certeza. Há muita vigilância ocorrendo em várias partes do mundo agora, mas deveríamos manter esse nível de vigilância o tempo todo, mesmo sem pandemia, apenas para ver se há a emergência de novos vírus sendo transmitidos para humanos.

O que a sra. recomenda que os estudantes que estão iniciando a carreira científica agora deveriam focar tendo em vista a possibilidade de emergência de novas pandemias?

Estudantes deveriam estar aprendendo amplamente sobre diferentes assuntos. Obviamente, uma vez que tiverem esse conhecimento, podem focar em alguma área. Mas hoje em dia o que acontece é que tem tanta ciência interdisciplinar acontecendo, que se você sabe apenas uma coisa, não é suficiente. Você precisa entender diferentes ciências, como matemática, física, biologia computacional, etc. Não é preciso ser um especialista em tudo isso, mas é muito importante entendermos as bases de todas essas diferentes disciplinas. Para que um dia você possa colaborar e fazer as perguntas certas com os especialistas.

Estadão

 

Opinião dos leitores

  1. Só falou verdades e só desmentiu o cara que engana a boiada até com ozônio no traseiro. Só pq ela é uma das maiores especialistas do mundo não significa que o Bozo, que mal tem um curso superior de paraquedismo não saiba mais que ela neh.

  2. Tem uns idiotas por aqui, que se esse imbecil disser que a areia do deserto do Saara é água, eles acreditam!

  3. Gente, e ela nem tocou no nome Ivermectina e Hidroxicloroquina. Ao contrario, foi bem clara ao dizer que não existe tratamento precoce.

  4. E desde quando cientista sabe de alguma coisa? Se Bolsonaro disse que é só um resfriado, qual é o cientista que tem voto suficiente pra desmentir isso? Viva a democracia e sua sabedoria.

    1. Cuidado pra não perder um familiar para covid e “queimar” a língua.
      Hang tá ai como exemplo.

    2. A internet e as redes sociais tem muitos méritos mas o seu grande problema é dar voz a quem nunca leu um livro na vida, só posts fake e memes bovinos. Aí vira esse grande circo onde não faltam palhaços. Me desculpe se você foi apenas irônico.

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Saúde

Vacina da Pfizer e da BioNTech mostra eficácia contra mutações do coronavírus, aponta estudo preliminar

Foto: Lucy Nicholson/Reuters

A vacina contra a Covid-19 desenvolvida pelas farmacêuticas americana Pfizer e alemã BioNTech mostrou eficácia na prevenção às mutações do coronavírus altamente transmissíveis descobertas no Reino Unido e na África do Sul, segundo um estudo clínico conduzido pela Pfizer e pela University of Texas Medical Branch.

A pesquisa ainda não foi revisada por pares.

As mutações são apontadas como responsáveis pelo aumento da transmissão do coronavírus e acendem o alerta sobre o risco de tornar vacinas inúteis.

O estudo foi realizado com sangue colhido de pessoas que receberam a vacina. As conclusões são limitadas porque não analisam o conjunto completo de mutações encontradas em qualquer uma das novas variantes do vírus que se espalham rapidamente.

O cientista da Pfizer Phil Dormitzer afirmou que o imunizante da empresa se mostrou eficaz contra a mutação N501Y e as outras 15 variantes testadas anteriormente.

“Testamos 16 mutações diferentes, e nenhuma delas teve um impacto significativo (sobre a eficácia da vacina). É uma boa notícia”, disse. “Isso não significa que a 17ª não terá.”

Dormitzer afirmou que outra variante encontrada na África do Sul – a E484K – também preocupa.

Os pesquisadores planejam realizar nas próximas semanas novos testes para ter conclusões mais detalhadas sobre a eficácia da vacina contra as mutações encontradas no Reino Unido e na África do Sul.

A comunidade científica ainda está reticente sobre a eficácia das vacinas em desenvolvimento contra as novas variantes do coronavírus, especialmente a sul-africana.

O professor de microbiologia celular da University of Reading Simon Clarke afirmou nesta semana que, embora as duas variantes tenham algumas características em comum, a encontrada na África do Sul “tem um número adicional de mutações”, que incluem alterações mais extensas na proteína spike.

As vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna usam tecnologia de RNA mensageiro e podem ser rapidamente ajustadas para lidar com as novas mutações do coronavírus. Os cientistas garantem que o processo pode ser realizado em seis semanas.

Bem Estar – G1

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Saúde

Coronavírus: as mutações do Sars-Cov-2 que intrigam cientistas

Foto: Getty Images

Pesquisadores nos EUA e no Reino Unido identificaram centenas de mutações no Sars-Cov-2, o vírus que causa a covid-19.

Mas ainda não está claro o que isso significará para a disseminação do vírus na população e para a eficácia de uma possível vacina.

Vírus normalmente sofrem mutações. A questão é: qual dessas mutações no Sars-Cov-2 realmente altera a gravidade ou infecciosidade da doença?

Pesquisas preliminares nos EUA sugeriram que uma mutação específica – D614G – está se tornando dominante e pode tornar a doença mais infecciosa, mas o estudo ainda não foi revisado por outros cientistas e publicado formalmente.

Os pesquisadores, do Laboratório Nacional Los Alamos, no Novo México, vêm acompanhando as mudanças nas “pontinhas” da cápsula do vírus, que lhe conferem a forma de “coroa”, usando um banco de dados chamado Iniciativa Global sobre Compartilhamento de Todos os Dados sobre Influenza (GISAID).

Eles observaram que parece haver algo sobre essa mutação específica D614G que a faz crescer mais rapidamente – mas as consequências disso ainda não são claras.

A equipe de pesquisa analisou dados do Reino Unido de pacientes com coronavírus em Sheffield. Embora as pessoas com essa mutação específica do vírus parecessem ter uma quantidade maior do vírus em suas amostras, os cientistas não encontraram evidências de que elas ficaram mais gravemente doentes ou ficaram no hospital por mais tempo.

‘Mutação não é uma coisa ruim’

Outro estudo da University College London (UCL) identificou 198 mutações recorrentes no vírus.

“Mutações em si não são uma coisa ruim e não há nada que indique que o Sars-CoV-2 esteja sofrendo mutações mais rápidas ou mais lentas do que o esperado”, afirma François Balloux, um dos autores desse estudo.

“Até agora, não podemos dizer se o Sars-CoV-2 está se tornando mais ou menos letal e contagioso.”

Um estudo da Universidade de Glasgow, que também analisou mutações, disse que essas mudanças não representam diferentes cepas do vírus. Eles concluíram que apenas um tipo de vírus está circulando atualmente.

O monitoramento de pequenas alterações na estrutura do vírus é importante para o desenvolvimento de vacinas.

Um exemplo disso é o vírus da gripe, que sofre uma mutação tão rápida que a vacina precisa ser ajustada todos os anos para lidar com a cepa específica em circulação.

Desenvolvimento de remédios

Muitas das vacinas contra covid-19 atualmente em desenvolvimento têm como alvo “pontinhas” diferentes da estrutura externa do vírus – a ideia é que fazer com que o organismo reconheça um elemento único do vírus o ajudará a combater o vírus todo.

Mas se essa estrutura estiver mudando, uma vacina desenvolvida dessa maneira pode se tornar menos eficaz.

No momento, tudo isso é teórico. Os cientistas ainda não têm informações suficientes para dizer o que as alterações no genoma do vírus significam.

Lucy Van Dorp, coautora do estudo da UCL, diz que a análise de um grande número de genomas de vírus pode ser algo “inestimável para os esforços de desenvolvimento de medicamentos”.

No entanto, diz ela à BBC, “existe um limite para o que os genomas podem ajudar a explicar”.

Época, via BBC

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