Foto: Cícero Oliveira
No início da história do Rio Grande do Norte, o território sofreu invasões de povos estrangeiros, como os franceses e os holandeses, o que deixou marcas culturais, a exemplo dos bordados ou da produção dos queijos regionais. Alguns desses costumes são observados de forma marcante na região do Seridó, devido a preservação de tradições ocasionada pelo isolamento geográfico e pelo costume dos casamentos entre pessoas da mesma família.
Apesar de a sabedoria popular não incentivar matrimônios consanguíneos, inclusive com reforço religioso de que seria pecado, muitos casamentos aconteceram com indivíduos do mesmo núcleo familiar. Hoje, com o avanço da ciência, sabe-se que evitar casamentos entre parentes próximos ocorre para reduzir o risco de desenvolver doenças hereditárias nos filhos de pais primos, como malformação, câncer ou síndrome.
A família de Wanuzia Melo, cabeleireira em Natal, tem origem na cidade de Caicó e é um exemplo de endogamia [união entre indivíduos aparentados]. “Na minha família, todo mundo casa com parentes. Eu também casei com meu primo, mas não tive culpa porque só descobri no dia do casamento”. Essa tradição trouxe como consequência a perpetuação da mutação de um gene, que causa a síndrome da polipose colônica hereditária – também chamada de polipose adenomatosa familiar (PAF) e que se caracteriza pelo aumento da produção de pólipos [crescimento anormal de tecido] no trato intestinal -, a qual se repetiu ao longo dos anos com diversos familiares.
Wanuzia contou que seus cunhados faleceram da enfermidade, mas na época, ela não conhecia a doença e, somente, sabia que eles tiveram câncer no intestino. Após a morte do último irmão do seu marido, ela decidiu que sua família realizaria colonoscopia (exame que analisa o intestino), quando verificou-se que ela e seu filho eram portadores da PAF. Contudo, somente a cabeleireira tinha desenvolvido câncer, pois havia pólipos malignos no reto e no intestino grosso. “Quando descobri, chorei durante cinco dias, pensando até quando iria viver e que a cada dia isso [pólipo] estava crescendo dentro de mim”, lembra.
Passado o choque inicial, a caicoense decidiu que venceria o câncer e começou a se preparar para a ileostomia (procedimento cirúrgico no intestino), seguindo as recomendações médicas à risca e com bom humor. “Durante esse período, me preparei como uma mulher se prepara para ter um menino. Cuidei do meu organismo, fui para uma nutricionista oncológica; fiquei seis dias sem colocar água na boca antes da cirurgia, mas não senti sede, porque preparei minha mente. Além disso, fiz até lembrancinhas para as visitas, arrumei o apartamento no hospital e fiz escala de quem iria cuidar de mim. Foi um evento!”, conta.
Após a recuperação da cirurgia, ela realizou o procedimento de reversão (reconstrução do trânsito intestinal). Atualmente, vive com apenas sete metros do intestino delgado e teve de mudar hábitos, como a alimentação que passou a ser mais rígida, porém ela considera que a experiência a fez melhorar como ser humano. “Tudo que acontece na vida ‘rola’ primeiro dentro da nossa cabeça. Precisei ir para o chão e voltar para minha origem, mas cresci muito com essa experiência, hoje sou outra pessoa”, analisa Wanuzia.
O futuro está no genoma porque é lá onde começa tudo. Os estudos de hoje podem não servir para mim, mas vão servir para meu neto ou para meu bisneto”, afirma Wanuzia Melo – Foto: Cícero Oliveira
Com o episódio, surgiu a vontade de ajudar pessoas com o mesmo problema, quando ela começou a participar do projeto Genética Potiguar, desenvolvido pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) com a Liga Norte-Riograndense contra o Câncer, onde a cabeleireira teve contato com a professora do Departamento de Biologia Celular e Genética, Tirzah Braz Petta Lajus, docente premiada pela Associação Americana para Pesquisa do Câncer (AACR), no Global-Scholar-In-Training Award (GSITA), por estudar mutações hereditárias de predisposição ao câncer no RN.
Genética Potiguar
O projeto Genética Potiguar teve início em 2009 com o aconselhamento genético de pacientes de alto risco na Liga Contra o Câncer. Ao longo de 2017 e 2018, Tirzah Lajus constatou dez laudos de pacientes diferentes com diagnóstico de mutação no gene MUTYH, responsável pela PAF. “Eu, na academia, pesquisadora, pensei que não poderia ser o acaso. Liguei para os médicos e falei que eram dez pessoas não aparentadas e eles informaram que todas eram do Seridó”, recorda.
Com um estudo genético-populacional de rastreamento de famílias classificadas como de alto risco para desenvolver câncer colorretal, o intuito é ter uma mostra de pelos menos 200 indivíduos. Dessa forma, a pesquisa é desenvolvida em três missões em Caicó. A primeira consiste em recrutar indivíduos para coletar sangue ou saliva, a fim de extrair o DNA. Na segunda missão, os pesquisadores darão o laudo aos pacientes e coletarão material genético de outras pessoas. Já na terceira missão, haverá a entrega dos resultados restantes.
Nos estudos da literatura específica e analisando a história do Seridó foi observado, que a mutação no gene MUTYH estava em banco de dados com mutação fundadora holandesa. “Vimos toda colonização do Seridó pelos holandeses, os hábitos e a característica física dos seridoenses, que são muito claros, o que tem muita influência da Europa. Começamos a juntar as coisas e observamos que existiam muitos casamentos consanguíneos. Então, deve ter sido uma mutação que ocorreu há muito tempo e que permaneceu ali por ter muita endogamia e muita consanguinidade”, explica a cientista.
Na Holanda, as estatísticas mostram que 10% da população desenvolvem essa síndrome, por ser um país pequeno e porque na origem do país o casamento entre parentes era comum. Já no Brasil, segundo a docente, a mutação é muito rara e, especificamente, no Seridó ainda não existem números exatos, mas a pesquisa visa à apresentação desses dados. “A síndrome está nos dizendo que tem um gene que não está indo bem. Se entendemos qual é o gene e o que ele causa, compreendemos a função dele e, consequentemente, conseguiremos caracterizar genes novos”, esclarece.
Após o procedimento da colostomia ou ileostomia, os pacientes utilizam uma bolsa coletora do conteúdo fecal permanente ou temporária
Voltado para pessoas do Seridó, podem participar do estudo voluntários que se encaixem em pelo menos num dos requisitos que são: ter diagnóstico de mais de 100 adenomas, que são conhecidos popularmente como caroços no intestino; ou já ter um diagnóstico de polipose colônica; ou ainda quem não teve diagnóstico, mas tem mais do que dois familiares diagnosticados. Os interessados podem entrar em contato com o grupo de pesquisa pelo email: [email protected].
Com o intuito de ampliar a pesquisa, em parceria com o Instituto Metrópole Digital (IMD-UFRN) neste ano, o projeto vai lançar um aplicativo para o mapeamento genético, com o objetivo de que os agentes de saúde cadastrem casos de doenças raras e as manifestações clínicas.
Polipose colônica hereditária
A polipose colônica hereditária ou polipose adenomatosa familiar (PAF) é caracterizada pelo aumento da produção de pólipos no trato intestinal, cujo crescimento é acelerado e pode levar à transformação maligna das células. O diagnóstico costuma ser precoce em pacientes jovens entre 20 e 30 anos. Contudo, os sintomas não aparecem de repente, por isso é importante realizar exames periódicos. O tratamento é realizado com cirurgia, quando pode-se para retirar todo o intestino, às vezes retirando também o reto e o ânus. Os principais sintomas de alerta são dificuldade de ir ao banheiro com frequência regular, sangue vivo nas fezes ou incômodos intestinais, além da existência de casos na família.
Com informações da UFRN
No Seridó o pessoal casa com primos com uma frequência impressionante. Façam um favor aos seus filhos e vão arrumar mulher em outras paragens. O próprio instinto humano junto com regras sociais a muito estabelecidas(tabu do incesto), naturalmente criam obstáculo a essas relações.