Carta que vem sendo recebida por usuários de torrent pede indenização pelo download de filmes de maneira irregular (Imagem: Reprodução/Partido Pirata)
Imagine chegar em casa e receber, pelo correio, uma notificação extrajudicial cobrando R$ 3 mil pelo download de filmes por meio de serviços de torrent. Pior ainda, o aviso fala sobre um caso ocorrido em 2019, do qual você nem se lembra mais ou, em muitos casos, foi registrado em uma rede que é compartilhada com outras pessoas que moram na mesma casa, familiares ou cônjuges. Essa foi a realidade de, estima-se, algumas dezenas de milhares de brasileiros neste mês de outubro.
Muitos deles, usuários de serviços de compartilhamento de dados P2P, foram surpreendidos com uma carta desse tipo relacionada ao suposto download e compartilhamento de três filmes que estrearam no cinema em 2019. Os detentores dos direitos autorais de filmes como Invasão ao Serviço Secreto, Hellboy e Rambo: Até o Fim solicitam o ressarcimento de milhares de reais pelos danos causados pelos atos , com o não pagamento da quantia citada na notificação podendo levar ao início de um processo judicial contra os notificados.
Esse tipo de ação é comum em países da Europa, como a Alemanha, onde leis federais proíbem o download e compartilhamento ilegal de conteúdos protegidos por direitos autorais, com multas que chegam pelo correio e valores de cerca de 800 euros (ou aproximadamente R$ 5 mil na conversão direta). No Brasil, o Código Penal prevê penas de três meses a um ano de prisão para quem violar os direitos de autor, entretanto, cita especificamente os casos em que as cópias são feitas com intuito de lucro; situações envolvendo o uso pessoal ficam em uma área cinza.
É o caso, por exemplo, de Y.F., de São Paulo, que pediu para ter sua identidade preservada em contato com a reportagem. Ele recebeu a notificação no início de outubro no endereço de sua mãe, em nome dela, que segundo ele, não seria a responsável pelo ato. Mais do que a notificação em si, chamou a atenção do usuário o fato de o escritório de advocacia responsável pela carta ter acesso a dados pessoais como nome completo e endereço do responsável pelo plano de telefonia, além de data, hora e endereço IP no qual o download teria sido identificado.
“Nunca achei que isso aconteceria comigo. Minha preocupação foi resolver o caso em nome de minha mãe, mas fiquei me perguntando como [os advogados] tiveram acesso a todas as informações para envio da notificação”, conta Y.F. A indicação, inclusive, seria de um download realizado em 2019, que o usuário afirma não se lembrar de ter feito.
Entrega de dados
Toda a situação começou a ficar um pouco mais séria antes mesmo do envio das notificações extra-judiciais aos apontados como responsáveis pelos downloads. A obtenção das informações pessoais dos clientes de telefonia é resultado de um pedido de quebra de sigilo feito pelo escritório carioca, especializado em casos envolvendo propriedade intelectual, em nome de uma empresa britânica chamada Copyright Management Services.
Ela estaria prestando serviços de rastreamento de cópias piratas de filmes da produtora americana chamada Millenium Media, que seria a responsável pelos direitos autorais dos três filmes por meio de subsidiárias chamadas Fallen Productions, HB Productions e Rambo V Productions. Além de Hellboy, Invasão ao Serviço Secreto e Rambo: Até o Fim, a companhia prestaria serviços semelhantes a outros estúdios, acompanhando o compartilhamento de versões irregulares de longas como Clube de Compras Dallas, Colossal, Invasão de Privacidade e Dupla Explosiva, entre outros lançados ao longo dos últimos anos.
Alguns dos filmes protegidos pela tecnologia Guardaley, que repassa os dados de quem os baixa e compartilha para os detentores de direitos autorais (Imagem: Captura de tela/Felipe Demartini/Canaltech)
Na petição, é citada uma tecnologia chamada Guardaley, um sistema de detecção de quebras de direitos autorais que informaria automaticamente à detentora dos copyrights sobre a disponibilização irregular de conteúdos protegidos. O texto afirma que, apenas com as informações obtidas pelo sistema, não é possível chegar aos responsáveis, daí o pedido à Claro para produção antecipada de provas.
A lista de títulos, bem como as informações citadas, aparecem em um pedido aberto pela Copyright Management Services contra a operadora na justiça cível de São Paulo, pelo escritório Kasznar Leonardos Advogados, especializado em propriedade intelectual. O documento fala em um total de 53,6 mil uploads e compartilhamentos dos três filmes, registrados entre 2019 e o início de 2020. A companhia apresenta uma lista de IPs responsáveis pelo download dos filmes e pede que a operadora apresente os dados pessoais correspondentes àqueles endereços, para que notificações relacionadas ao compartilhamento irregular dos conteúdos possam ser enviadas.
A solicitação foi feita em março deste ano e gerou parecer favorável do Tribunal de Justiça de São Paulo, emitido em maio. Na ocasião, a Claro tinha 48 horas para entregar as informações ou estaria sujeita a multas de R$ 10 mil por dia. O caso continuou tramitando até que, em setembro, a operadora anexou ao processo duas planilhas que continham os dados solicitados pela empresa, com as notificações sendo enviadas aos usuários de torrent em outubro.
Estranheza e desproporção
Além do próprio recebimento das notificações pelos usuários, que já são assustadoras o bastante, alguns aspectos dos documentos apresentados chamam a atenção. Nos papeis registrador na justiça paulista, por exemplo, a solução é chamada de Guardaley, enquanto nas cartas, aparece a Blunting Digital Forensics, uma prestadora de serviços em forênsica digital em mais de 20 países. Em seu site oficial, a companhia não cita serviços ligados ao rastreamento de copyright, mas fala em análise de documentos digitais e resposta a incidentes de segurança.
Em nenhum ponto, entretanto, é citada a brasileira Imagem Filmes, responsável nacional pelos três longas citados. Em resposta ao Canaltech, a distribuidora informou que não está envolvida nos casos nem possui qualquer informação sobre os trâmites judiciais, que podem ter sido movidos diretamente pelos produtores internacionais dos filmes.
Não foi possível encontrar os contatos referentes às companhias citadas como detentoras dos direitos autorais dos filmes, assim como a Copyright Management Services, cujo site parecia estar fora do ar durante todo o processo de apuração. Chamou a atenção, ainda, o fato de pesquisas ligadas a HB Productions, Fallen Productions e Rambo V Productions somente trazerem resultados relacionados às disputas de direitos autorais como as que acontecem agora no Brasil, sem que seja possível localizar presenças oficiais ou maneiras de entrar em contato com elas.
“A indústria cinematográfica tem um grande receio de se expor junto a seus clientes, que no caso, seriam os espectadores. Por isso, e também como forma de facilitar o licenciamento e ações de defesa de copyright, são criadas empresas que lidam com a totalidade dos direitos autorais de cada obra”, explica Rafael Lacaz Amaral, um dos advogados responsáveis pela ação. Ele afirma que, assim como a própria Kasznar Leonardos, outros intermediários, como seria o caso da Millenium Media e da Copyright Management Services, são responsáveis por notificações e combate à pirataria em diferentes países do mundo.
“Cada estúdio age de uma forma [em relação a esse tipo de infração]. Nosso escritório trabalha apenas na obtenção dos dados e no envio das correspondências, como forma de recuperar uma pequena parcela dos danos causados pela quebra dos direitos autorais”, continua o advogado. “Todo o processo é feito da forma mais transparente possível, desde a captura dos dados até a listagem e envio das correspondências”, explica, indicando que o uso de duas soluções diferentes para rastreamento das cópias irregulares dos filmes é uma medida para garantir que não existam tropeços nestas etapas iniciais.
Amaral vai além e cita, também, um caráter educativo por trás das notificações enviadas aos usuários brasileiros, que também seria uma tentativa de disseminação de informações sobre copyright por parte da indústria de cinema. Segundo ele, há um desconhecimento geral entre a população sobre as proteções de direitos autorais, e mais do que uma tentativa de indenizar os estúdios, o trabalho que está sendo realizado é pedagógico. “O objetivo é conscientizar as pessoas de que existe um investimento sendo feito na produção e, também, na proteção destas obras, o que acaba levando à responsabilização de quem violou os direitos de autor”, explica.
O advogado afirma, ainda, que esta não é a primeira vez que notificações desse tipo são enviadas a usuários de torrent no Brasil, com o próprio escritório estando envolvido em pelo menos um dos precedentes. Em 2019, a Algar Telecom foi acionada e teve de entregar os dados pessoais de clientes que baixaram o filme Fúria em Alto-Mar; Amaral aponta que, nesta ocasião, o número de notificações foi baixo em relação ao atual, um processo maior que envolve três filmes e uma quantidade muito maior de pessoas.
Para Y.F., a cobrança de R$ 3 mil soa desproporcional. “Não obtive lucro com o filme, enquanto existem operações grandes de vendas de filmes piratas em qualquer cidade. Perto dessas, sou peixe pequeno”, continua o usuário, que disse ter entrado em contato com o escritório de advocacia responsável pela notificação e apresentado uma contraproposta, no valor de R$ 1 mil. Na sequência, acionou uma advogada e, pelo menos até o momento de publicação desta reportagem, não havia recebido resposta.
Amaral não pode falar sobre os próximos passos das ações, por não estar envolvido neles e, também, por se tratarem da estratégia judicial dos detentores. Por outro lado, o advogado aponta o motivo para o valor fixado, que diz ser um padrão da indústria cinematográfica mundial. Além disso, aponta que os danos causados aos estúdios não se limitam, apenas, aos downloads. “Os serviços de torrent baixam conteúdos e os distribuem para usuários de todo o mundo. A indenização seria uma forma de ressarcir uma pequena parte dos danos causados por essa ação, além de ter função pedagógica junto aos infratores.”
Entrega de dados
A quebra do sigilo dos clientes da Claro também é um ponto que chama a atenção em todo o caso. Como já citado, as informações foram anexadas em duas planilhas do serviço de hospedagem do Google, coladas em resposta da operadora ao Tribunal de Justiça de São Paulo. No total, entre os dois documentos, eram mais de 70,3 mil entradas contendo nomes completos, endereços e CPFs de clientes de todo o Brasil, além das datas, horas, nomes de arquivo e softwares utilizados para o download dos filmes citados.
A questão é que os dados foram entregues em planilhas simples, sem nenhum tipo de dispositivo de segurança, e que poderiam ser acessadas por qualquer um que tivesse acesso ao processo, além de compartilhadas dali sem a possibilidade de verificações. No momento em que essa reportagem é publicada, os documentos se encontram fechados, com o acesso sendo fornecido apenas mediante autorização pelos administradores da nuvem.
Em resposta ao Canaltech, a Claro informou que, “em cumprimento de ordem judicial do Tribunal de Justiça de SP e nos termos da Lei 12.965/14, forneceu única e exclusivamente ao órgão as informações determinadas pela Justiça”. A legislação citada pela operadora é o Marco Civil da Internet, que garante o sigilo das comunicações e dados dos usuários da rede no Brasil, a não ser em caso de solicitações judiciais como a feita pelo TJSP.
Por que, então, as informações foram anexadas aos procedimentos de forma aberta e acessível até mesmo a quem não está envolvido na disputa? De acordo com Fernando Antônio Tasso, juiz coordenador do órgão de proteção de dados do Tribunal De Justiça de São Paulo, trata-se de uma questão de transparência. “As únicas informações acessíveis a qualquer pessoa são os dados básicos do processo, como o nome das partes, a vara responsável e o tipo de ação, além de decisões, despachos e sentenças”, explica.
Além das partes envolvidas no processo e advogados certificados no sistema digital do TJSP, apenas jornalistas e pesquisadores podem ter acesso ao sistema mediante pedidos autorizados e verificados. Tasso afasta a ideia de que a publicação de dados desta maneira possa levar a um incidente de segurança e compara a disponibilidade dos dados de um processo à de um prontuário médico, com ambas as informações precisando de disponibilidade caso as partes envolvidas queiram substituir o profissional contratado inicialmente. “Todos os acessos ficam registrados por seis meses, de acordo com o Marco Civil da Internet e nossa própria política de privacidade”, explica. Em caso de mau uso das informações, os responsáveis podem ser acionados.
“Se por um lado temos que preservar a privacidade [dos cidadãos], por outro temos de dar transparência ao judiciário”, completa o juiz, citando normas federais que garantem o acesso a processos e tramitações judiciais. É o caso, por exemplo, da resolução nº 215, de 2015, do Conselho Nacional de Justiça, diretamente atrelada à Lei de Acesso à Informação, promulgada em 2011 pela então presidente Dilma Rousseff.
Avaliação e resposta
Na visão do Partido Pirata do Brasil, esta pode ser considerada como uma ação de copyright trolls no Brasil. O termo, conhecido lá fora mas pouco usado por aqui, justamente, pela raridade de casos assim, se refere ao uso de notificações judiciais, ameaças de processo e outras atitudes consideradas agressivas para obter lucro a partir de questões ligadas à proteção dos direitos autorais.
“Não sabemos o número exato de pessoas [que receberam as notificações], mas acreditamos em, talvez, milhares de usuários, aumentando a cada dia”, afirma Montanha, membro do grupo de trabalho de comunicação do Partido Pirata do Brasil. Segundo ele, a organização está trabalhando no caso tirando dúvidas, prestando esclarecimento e acalmando os acusados. “Nossa recomendação é para que as pessoas não cedam e não realizem o pagamento. Como diz o velho ditado, não alimente os trolls”, completa.
O representante afirma não saber de casos em que a notificação extrajudicial levou a processos abertos contra os utilizadores de torrent, enquanto outros, como no caso de Y.F., tentaram contato com o escritório responsável mas não receberam resposta. “Existem pessoas que foram notificadas há meses e nunca mais foram incomodadas. De que temos conhecimento, até o momento, somente provedores de internet [foram acionados judicialmente] para que revelassem os dados pessoais dos assinantes”, completa Montanha.
Filipe Monteiro, advogado especializado em propriedade intelectual, games e eSports, do escritório Ritter Advogados, explica que a base da atuação dos trolls de copyright é, justamente, o desconhecimento do público em geral sobre a propriedade intelectual, com ameaças de processo e altas multas gerando o receio de repercussões negativas para os acusados. “Com esse modus operandi, os [responsáveis] monetizam o medo dos notificados. Porém, o valor solicitado como indenização pode soar como um bom ‘custo-benefício’, quando comparado aos montantes de eventuais condenações judiciais e honorários advocatícios, com o pagamento sendo realizado para firmar o acordo extrajudicial.”
O advogado explica que as notificações recebidas pelos usuários brasileiros podem ser legítimas mesmo sem o envolvimento da distribuidora local. Os estúdios, aponta, também estão aptos a iniciarem ações desse tipo fora de seus países de origem, por meio de procuradores que possam os representar. Segundo ele, ações desse tipo também acontecem no mercado de patentes, de maneiras semelhantes. Estes são mais presentes no Brasil, ao contrário das notificações de copyright, que para Monteiro, ainda estão ganhando tração em nosso país.
“Antes de tomar qualquer decisão, [quem receber a carta] deve contar com o auxílio de um advogado de sua confiança, que avaliará todo o cenário com diligência e recomendará a melhor estratégia a ser executada”, indica Monteiro. Ele aponta, por outro lado, que uma resposta inadequada ou até a ausência de retorno pode resultar em ações judiciais contra os acusados.
CanalTech
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