Foto: Amit Dave/Reuters/Arquivo
A possível chegada de vacinas contra a Covid-19 à rede particular aqueceu o mercado de clínicas privadas no Brasil. É que o dizem especialistas e consultores da área ouvidos pelo G1.
Ainda que a campanha de vacinação esteja restrita à rede pública, eles relatam que:
a rede privada passou a negociar a compra de vacinas;
clínicas já estabelecidas buscam agregar serviço de imunização, e há quem esteja começando o negócio do zero;
para os novatos, compra de vacinas é um desafio (quase 100% dos imunizantes disponíveis na rede privada são importados);
e a venda de refrigeradores subiu (com registro de até 30% entre 2019 e 2020).
Trata-se de um mercado que demanda alto investimento inicial, importação de vacinas e conhecimento de normas e regulamentações. Por exemplo: toda dose de vacina aplicada na rede particular deve ser reportada ao Ministério da Saúde, assim como eventuais efeitos adversos.
O presidente da Associação Brasileira de Clínica de Vacinas (ABCVac), Geraldo Barbosa, disse que a possibilidade real da chegada da vacina contra a Covid- 19 desencadeou nos últimos meses um aumento “significativo e expressivo” da procura de profissionais de saúde por informações sobre como abrir a própria clínica.
Fenômeno semelhante ocorreu em 2016, depois de um surto da gripe H1N1, quando filas enormes se formaram em clínicas particulares de vacinação.
Segundo Barbosa, de 2016 para 2017, o número de clínicas cresceu 60% no país. Mas, entre os estabelecimentos que abriram no período, apenas metade conseguiu manter as operações. “Houve uma expectativa de que era um serviço fácil de executar – e não é”, afirma ele.
No início de janeiro de 2021, a ABCVac informou que estava negociando a compra de 5 milhões de doses da vacina Covaxin, do laboratório indiano Bharat Biotech. A iniciativa despertou o interesse de clínicas particulares brasileiras.
No dia 12 de janeiro, a Bharat disse que assinou um acordo de fornecimento para a companhia brasileira Precisa Medicamentos. Nesta segunda-feira (1º), a Precisa anunciou que vai pedir autorização à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para começar os testes clínicos da fase 3 da Covaxin no Brasil. Caberá a um hospital coordenar os estudos com os voluntários.
A possibilidade da chegada da vacina na rede privada – enquanto a vacinação na rede pública ainda é incipiente – gerou críticas de especialistas.
“As vacinas são bens públicos nesse momento”, disse no início de janeiro à GloboNews Mariângela Simão, diretora-adjunta para acesso a medicamentos da Organização Mundial de Saúde (OMS). “Não deveria ter discriminação no acesso à vacina para quem paga e não paga.”
Toda a produção do Instituto Butantan e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) é destinada à rede pública.
Há duas iniciativas da rede privada para a tentativa de compras de vacina:
a da ABCVac com a indiana Bharat Biotech;
e outra frente formada por empresas brasileiras que buscam doses do imunizante de Oxford/AstraZeneca.
Novo negócio
Dono de uma empresa de tricô em Imbituva, no interior do Paraná, Leandro de Andrade, de 42 anos, viu a renda minguar em 2020. Com a chegada da Covid-19, ele e a esposa, que é dentista, resolveram abrir uma clínica particular de vacinação.
“É duro a gente falar isso, mas infelizmente foi por causa da pandemia”, disse Leandro.
Os dois começaram a concretizar o plano em setembro de 2020, e a previsão é inaugurar em março de 2021. Eles buscam ocupar um espaço ainda pouco explorado no pequeno município em que moram. “Será a primeira clínica na cidade. É nisso que a gente está apostando também”, afirma ele.
Hoje, no Brasil, em teoria, qualquer pessoa pode abrir uma clínica de vacinação, desde que o espaço tenha um responsável técnico (médico, enfermeiro, farmacêutico ou biomédico, filiado ao conselho da sua categoria).
No caso do estabelecimento de Leandro, uma enfermeira foi contratada para desempenhar a função.
Aumento de demanda
O consultor Marcos Tendler, que atua há 20 anos na área de abertura de clínicas de vacinação, viu aumentar a demanda por seus serviços nos últimos meses, principalmente na virada do ano.
Ao longo de dezembro de 2020, 28 pessoas solicitaram à empresa dele informações sobre o tema. Considerados só os primeiros 15 dias de janeiro, foram 74 interessados.
O consultor disse que uma clínica padrão, de 30 m², é um “pequeno bom negócio” para um profissional de saúde: “Em vez de fazer dois ou três plantões para complementar a renda, ele tem uma clínica”.
Segundo os especialistas, a maioria das pessoas que abrem uma clínica de vacinação é formada por profissionais de saúde que já têm alguma estrutura – um consultório, por exemplo – e querem passar a prestar o serviço de imunização.
É o caso da imunologista Nathalia Simis, de 36 anos, que pretende abrir uma clínica de vacinação em Sorocaba, no interior de São Paulo, em fevereiro. O sogro dela tem laboratórios e consultórios, e a família irá aproveitar a infraestrutura, já pronta, para também aplicar vacinas. Simis e o marido, também médico, irão continuar atendendo seus pacientes, e o empreendimento trará uma renda complementar.
Para quem quiser sair do zero, o investimento é alto. “Vai precisar de uns R$ 200 mil para começar, até ter um faturamento positivo, o que deve acontecer na virada do primeiro para o segundo ano [após a abertura do negócio]”, disse Tendler.
A enfermeira e consultora Meire Branco, do Mato Grosso, também recebe ligações de todo o país em busca de orientações para a abertura de clínicas particulares. Ela diz já ter rejeitado clientes ao perceber eles tinham uma visão oportunista.
“Eu já dispensei muitos treinamentos, muitas aberturas de clínica, porque a pessoa liga para mim e fala: ‘Ai, eu quero um treinamento, porque quero abrir uma clínica e bombar com essa vacina da Covid’.”
Para a médica Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), é importante ressaltar que “vacinar não é aplicar uma injeção”.
O profissional de saúde que irá trabalhar com imunização tem de atender a uma série de exigências e padrões técnicos da Anvisa, além de reportar cada dose aplicada e possíveis eventos adversos ao Ministério da Saúde.
Aumento de venda de refrigeradores
As empresas que vendem refrigeradores específicos para o armazenamento de vacinas já sentem o aquecimento do mercado. A Indrel Scientific, uma das líderes do segmento, informou que em 2020 as vendas foram 30% maiores que em 2019.
“Sentimos um aumento grande na procura do meio de 2020 até o momento. As clínicas estão se preparando para uma possível abertura da vacina do Covid na rede particular”, disse ao G1 o CEO da empresa, João Rapcham.
Ele afirma que também já recebeu demanda de países da América Latina, como Paraguai, Bolívia, Peru e República Dominicana.
A Biotecno, também líder de mercado, disse que em 2020 o aumento de faturamento foi de 35%.
Comparando a primeira quinzena de janeiro de 2020 ao mesmo período neste ano, o aumento chega a 800%. “Isso é algo nunca experimentado antes por nós, algo novo, e [é] uma demanda que estamos preocupados em atender”, disse Lídia Linck Lagemann, sócia-diretora da Biotecno.
As duas empresas vendem tanto para a rede privada como para governos e não revelam os números absolutos das vendas.
Vacinas da rede particular são importadas
Para além das normas obrigatórias do setor, o profissional que abrir uma clínica terá de entrar na disputa pela compra de vacinas.
Hoje, na rede particular do Brasil, quase todas as vacinas são importadas, a maior parte vinda dos Estados Unidos e da Europa, segundo a ABCVac. A única produzida no Brasil que vai para a rede privada é a BCG, fabricada na Fundação Ataulpho de Paiva.
Ou seja: o país disputa a compra de vacinas com outros mercados do mundo. “Quem tem vacina é quem tem contrato de longo prazo com o fornecedor, os novos estão sofrendo muito”, disse Geraldo Barbosa, presidente da Associação Brasileira de Clínica de Vacinas (ABCVAC).
Segundo Barbosa, hoje várias vacinas estão em falta na rede particular, como febre amarela, BCG e algumas de meningite.
“O cara vai cair de paraquedas no mercado, não vai conseguir comprar vacina de Covid e vai se frustrar”, alerta o consultor Marcos Tendler.
Pela dificuldade em se conseguir vacinas, o presidente da ABCVac afirma que há anos o mercado atua em 70% da sua capacidade de operação. A quantidade de imunizantes que chega ao Brasil já vem dentro do consumo médio estabelecido.
Por isso, quando há algum tipo de crise, muitas vezes não é possível atender a demanda e se formam as longas filas, como quando foi disseminada a informação de que o neto do ex-presidente Lula, de 7 anos, teria morrido de meningite.
“Você não tem noção do que viraram as clínicas de vacinação. Em um mês consumiram 90% do estoque das vacinas de meningite”, contou Marcos Tendler.
“Então, não basta você abrir uma clínica, você tem que ter certeza que terá acesso ao imunizante”, afirma Barbosa.
Compra de vacinas pelo setor privado
A vacina indiana Covaxin recebeu autorização emergencial da agência reguladora de medicamentos da Índia no início de janeiro. No entanto, ainda não foram divulgados os resultados da fase 3 de testes, o que deve ser feito até o final deste mês.
A expectativa é que a Bharat faça a solicitação de registro na Anvisa em fevereiro. “A gente não está com essa pressa de fazer com que a Anvisa corra. A gente quer que o processo seja feito dentro dos trâmites normais para garantir a vacina”, disse o presidente da ABCVac.
Já a iniciativa de grandes empresas brasileiras que tentam adquirir 33 milhões de doses da vacina de Oxford ainda não tem data prevista. O presidente Jair Bolsonaro falou que aprova a compra pela rede privada.
No entanto, em nota, a AstraZeneca informou que, por ora, não tem condições de vender doses para o setor privado.
“No momento, todas as doses da vacina estão disponíveis por meio de acordos firmados com governos e organizações multilaterais ao redor do mundo, incluindo o Covax Facility [consórcio coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS)], não sendo possível disponibilizar vacinas para o mercado privado”, disse a farmacêutica.
G1
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